Psicanálise Contextualizada 11/04/2025 15:27:56
O que é a Psicanálise? É a teoria criada por Freud que, ao longo dos anos, foi sistematizando conceitos e procedimentos do exercício clínico, tendo seu marco zero reconhecido na publicação do livro A Interpretação dos Sonhos, de 1900. Porém, antes mesmo, Freud já estava construindo a teoria para estruturação de uma técnica e, de lá para cá, a Psicanálise se consolidou como uma das muitas metodologias existentes no campo da Psicologia.
O grande corte epistemológico de Freud foi o conceito do inconsciente, o qual trouxe uma guinada na forma de ouvir o ser humano, até então entendido por demandas situacionais do “aqui e agora”. Este conceito colocou Freud, inclusive, em uma posição de referência para a Filosofia. Em muitos manuais e artigos históricos da Filosofia, Freud e a Psicanálise são citados como marcos no desenvolvimento dessa ciência humana.
A Psicanálise como prática profissional no Brasil
O problema é que, no Brasil, a Psicanálise virou profissão sem ser estruturada como ofício, pois não há graduação formal nesta área e não há uma autarquia federativa que legitima a Psicanálise como uma função profissional parametrizada. Neste caso, para o campo de atendimento clínico na área da Saúde Mental e Emocional, temos a Psicologia e a Psiquiatria como ciências e profissões reconhecidas. Lógico que, em todas as áreas da saúde, assim como em muitas outras áreas do conhecimento, múltiplas teorias existentes são incorporadas como recursos para que profissionais melhorem seus atendimentos a pacientes e clientes. No entanto, como atendimento sistematizado no campo da saúde mental, as estruturas metodológica e legalmente reconhecidas no Brasil são estas citadas, assim como alguns setores de intervenção da Neurologia.
Sendo assim, o grande dilema da Psicanálise no Brasil na atualidade diz respeito a uma enorme proliferação de escolas e instituições psicanalíticas que engloba pessoas de diferentes áreas de conhecimento que se intitulam psicanalistas após seu período de formação, como se estivessem exercendo um ofício formal. Pior ainda: Viabiliza também a expansão do exercício da Psicanálise para um público leigo, esteticamente legitimando até mesmo pessoas sem nível superior de formação que já abrem clínicas e se auto-intitulam psicanalistas.
Religião, formações e distorções do ofício psicanalítico
Como Freud, em sua época, mantinha relacionamento de trocas de ideias com estudiosos de várias áreas do conhecimento — principalmente no campo das ciências humanas, incluindo até pastores que com ele estudavam — hoje houve um grande aumento no contingente de pastores evangélicos que buscam a Psicanálise como ferramenta para se estabelecerem enquanto referências de tratamento emocional às pessoas de sua cultura religiosa. Assim, garante-se que aquele “psicanalista” ligado à igreja não vai desviar a fé do fiel e ministrará um tratamento que não questiona tal prática. Isto ocorre porque, no bojo da obra de Freud, a religião sempre foi um tema crítico que coloca seu autor como inimigo da religião aos olhos de muitos da prática judaica e cristã. Vale ressaltar que a Psicanálise, na sua essência, não vai questionar a religião em si ou as convicções do indivíduo, mas o que o sujeito busca e como ele deseja se preencher na sua prática religiosa.
Quando recebo pacientes que trazem trajetórias de sujeição a tratamentos psicanalíticos vindos de líderes religiosos, automaticamente sei que terei muito conflito em potencializar o recurso analítico de interpretações — que consiste na pessoa em análise ter epifanias a partir de suas próprias falas, elaborando por conta própria suas demandas internas com cautela — por saber que estes estavam com pseudo profissionais e ainda buscam orientação, solução ou luz que venham de fora para dentro.
Formações sérias, regulamentação e recomendações finais
Por outro lado, temos múltiplas escolas de Psicanálise que apresentam uma estrutura institucional e regimental bem definida, com integrantes que passam por uma formação que não se dá na forma de aula, mas no processo de vivenciar a prática. Analisar, ser analisado, estudar entre os parceiros deste coletivo, participar de seminários, grupos de leitura, escrever artigos e encontros de cartéis temáticos por interesses comuns, entre outras atividades. Desta maneira, podemos dizer que estaremos diante de uma pessoa que está inserida no contexto da Psicanálise e até evoluindo para ser um psicanalista, o que representa alguém que exerce a teoria e técnica dentro de uma perspectiva ampla.
Lembrando que a Psicanálise também é ramificada em múltiplas abordagens e correntes que vão desde os freudianos aos pós-freudianos, lacanianos e, inclusive, aqueles que partiram para um processo grupal, como elaborou os seguidores da Psicanálise Bion. Há uma miríade de escolas, incluindo americanas, inglesas, francesas, argentinas, e, no Brasil, já podemos entender que está se multiplicando em várias estratificações. O que leva a maiores dilemas ainda, pois quem pode dizer que esta ou aquela forma de vivenciar o processo de formação do psicanalista é a mais correta?
Muitas escolas de Psicanálise não se comunicam umas com as outras e até se questionam, algumas chegando até a se atacarem. Porém, se o profissional que se sente psicanalista estiver realmente vinculado a uma instituição de Psicanálise que tenha história e procedimentos claros e bem definidos, é um atenuante substancial. O dilema maior está nos que se auto-intitulam psicanalistas por terem feito um cursinho aos finais de semana por um tempo.
Eu mesmo, quando procuro um profissional para me analisar, escolho um profissional graduado em Psicologia e que atue com a Psicanálise para não correr o risco de me sujeitar a um não-profissional sem regulamentação. Mesmo que seja um profissional que se auto intitule psicanalista, procuro saber se possui inscrição no Conselho Regional de Psicologia, justamente pelo fato de que a Psicanálise não é profissão regulamentada, mas sim uma metodologia.
Hoje, o Conselho Federal de Psicologia está numa campanha ampla de defesa da psicoterapia para profissionais da Psicologia. Isto ocorre devido ao fato de muitas outras profissões estarem oferecendo propostas diversas de psicoterapias por ser um nicho de mercado em alta em uma Sociedade cada vez mais adoecida emocionalmente. Assim, é preciso termos regulamentação clara na forma da lei, pois temos neste país a forte tendência de cada um se achar no direito de atuar da forma que melhor entender.
Veja que essa demanda acontece também com profissionais de diferentes áreas, como educadores físicos, fisioterapeutas, engenheiros, e até médicos. Vemos profissionais exercendo procedimentos especializados fora de suas áreas nativas pela oportunidade que se apresenta diante de uma demanda ampla, numa dinâmica que seria equivalente a um profissional da Psicologia prescrever medicação psiquiátrica aos seus pacientes.
Diante do que trago como dilema da Psicanálise no Brasil, a indicação que faço é que, quando você for procurar um psicanalista, o faça buscando um profissional da Psicologia que manuseie a Psicanálise como teoria e técnica. Pelo menos, isso reduzirá consideravelmente as chances de que você caia nas mãos de um agente que parece um profissional, mas não é.
Visitas: 32
Psicanálise Contextualizada 11/04/2025 15:27:56 31
O que é a Psicanálise? É a teoria criada por Freud que, aolongo dos anos, foi sistematizando conceitos e procedimentos do exercícioclínico, tendo seu marco zero reconhecido na publicação do livro A Interpretação dos Sonhos, de 1900.Porém, antes mesmo, Freud já estavaconstruindo a teoria para estruturação de uma técnica e, de lá para cá, aPsicanálise se consolidou como uma das muitas metodologias e...
Psicanálise Contextualizada 12/03/2025 13:56:09
Minha trajetória com a psicanálise iniciou-se com Freud e os pós-freudianos Melanie Klein e Winnicott. No entanto, há pouco tempo comecei a visualizar novas possibilidades para o meu exercício profissional, dentro da perspectiva lacaniana.
Entro em Lacan através do “De um Outro ao Outro” (livro 16)¹. Após a leitura deste seminário, posso dizer que Lacan já habita meu fazer psicológico, tanto para a clínica quanto para meu processo analítico pessoal, sem deixar de fazer vínculo desta teoria com o social, uma demanda que o próprio Seminário 16 como cordas para puxar. Esse processo se deu ao participar do Coletivo Psicanálise & Cultura de Vila Velha – ES, ao longo dos dois anos consecutivos de estudo em Cartel.
O objeto a e suas implicações na clínica psicanalítica
Aqui, gostaria de pontuar um tópico específico que diz respeito à clínica psicanalítica, embora o Seminário 16 tenha feito emergir muitos outros tópicos e deixado lastros para novas elaborações.
Lacan aponta que “A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 2008, p. 14), o que já introduz um nó em minha mente, fazendo-me questionar: ‘O que estou fazendo aqui?’. Porém, com esse quase enigma, vemos um desfecho na construção do objeto a, no qual Lacan, ao longo deste Seminário, vai criando referenciais comparativos e analogias. E, falando de analogias, , “...a conta certa para nos fazer perceber que não é o significado que está no interior, mas exatamente o significante. É com ele que lidamos quando se tratar daquilo que nos importa, isto é, da relação do discurso com a fala na eficiência analítica” (LACAN 2008, p.16).
Lacan traz a homologia da mais-valia em Marx e do que ele mesmo define como o mais-de-gozar: “É de um nível homólogo calcado em Marx que partirei para introduzir hoje o lugar em que temos de situar a função essencial do objeto a” (LACAN, 2008, p. 16). Em Marx, Lacan situa a mais-valia a partir da absolutização do mercado, que marca a prevalência da lógica do valor, e para a Psicanálise, o mais-de-gozar, que marca a prevalência da linguagem: “O mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a (...) assim, o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do objeto (a)” (LACAN, 2008, p. 19). Ou seja, essa função do objeto a é homóloga à da mais-valia; nesse sentido, ambas geram um movimento contínuo de furto de satisfação, que se desdobra em um movimento incessante de produção e falta.
A ética no exercício psicanalítico: Entre o Furo e a Transferência
Ao longo do seminário, Lacan nos conduz a diferentes percepções de estruturas que nunca conseguem chegar a um fechamento definitivo, deixando-as sempre em aberto, colocando em prática o próprio furo de que ele tanto fala. Assim, Lacan relaciona a psicanálise com a aposta e o jogo, quando se refere a Pascal, quando explora a relação infinita entre o 1 e o 2 na matemática, e quando aponta para aquilo que é a falta, evidenciada pelas instituições de poder. Porém, para cada referência neste processo de construção, abre-se um leque enorme de possibilidades. Mas, aqui, quero simplesmente conduzir essa reflexão ao desfecho sem fim da proposta de Lacan neste seminário, trazendo o que considero uma cartilha de conduta analítica, que entendo como ética no exercício psicanalítico:
“...devemos admitir que somente a repetição é interpretável na análise, e é isso que tomamos por transferência. Por outro lado, o fim que aponto como a captação do próprio analista na exploração do a, é exatamente isso que constitui o ininterpretável. É por isso que interpretá-la, como já se viu, como foi até impresso, é, propriamente, abrir a porta, convidar para esse lugar do acting out.” (LACAN 2008, p. 338)
Estudar o Seminário 16, entendendo que este pode ser uma porta escancarada para adentrar em Lacan, proporcionou-me a possibilidade de perceber que meu próprio processo analítico estava se dando como uma demanda de postura profissional, de estar em análise. Como podemos entender que a formação do analista se dá no estabelecimento de laços de trabalho, o “De um outro ao outro” me coloca na posição de ir para a minha própria análise, pensando no furo e rastreando onde habita o objeto a em mim, em um processo contínuo de interpretações nas duas instâncias que se comunicam: analista/analisando. Na configuração em torno do Seminário 16, Lacan nos aponta uma ética para o processo analítico:
Nesta citação de Lacan, podemos fazer um retorno a Freud, quando, ao ler o caso clínico de Dora², desenvolve uma reflexão/avaliação de sua atuação, no qual ele posiciona a psicanálise de uma maneira que, a meu ver, fala sobre a ética do psicanalista:
Neste sentido, em ambos os casos, me parece que está em questão escutar sem pressupor nada, deixando que a própria significação daquilo que é ouvido, falado e visto advenha dos encadeamentos significantes da narrativa do analisante.
O Cartel 16, como anotei em minha agenda, não se fecha, escancara ainda mais a porta para o mergulho no Real, Simbólico e Imaginário, que é constantemente preconizado na obra de Lacan. Lacan nos transporta para essa dimensão quando apresenta a imagem da maçã, na relação entre Adão e Eva, ao desenvolver a representação de S1, S2 e a: “...A mulher, aqui em S1, que se faz causa do desejo, a, é o sujeito de quem convém dizermos que, com a oferta, conseguiu criar a procura. O homem nunca morderia essa história, se primeiro não lhe oferecessem a maçã, ou seja, o objeto a” (LACAN, 2008, p. 381). Já que “consumir” a maçã é o mesmo que “renunciar” a algo tão grandioso e completo quanto o paraíso.
De nó em nó, algumas poesias³ brotaram a partir do estudo de Lacan, dentre elas, uma que dialoga com essa minha construção e na qual encerro esta apresentação.
Um nó
Pulso no desejo que busco,
Busco no encontro do outro,
Encontro-me no que não encontro.
Continuo vagando em busca do gozo
Deste gozo que não goza,
Mas pulsa o desejo de gozar.
Caio no vazio de um existir,
Suplico que alguém possa me vir,
E ao chegar consiga entrar em mim.
Ao chegar de algum lugar este alguém,
Ao se apresentar não vejo ninguém.
Nego encontrar-me
Espero no além.
Restabeleço nova busca,
Novo impulso me conduz
Aos prazeres que nunca encontro.
Saio do real.
Adentro no imaginário
E continuo simbolizando.
(ABARCA, 2024, p.83)
REFERÊNCIAS
1 LACAN,Jacques. O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
2 FREUD, Sigmund. Histórias Clínicas - Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. (Obras incompletas de Sigmund Freud)
3 ABARCA, Gerson. Outono. Vitória: Outras Falas, 2024.
* Este texto possui uma abordagem mais técnica e está voltado para os referenciais da clínica psicanalítica, diferenciando-se um pouco dos textos que geralmente publico aqui no site. Normalmente, priorizo o leitor leigo em psicologia e psicanálise, buscando apresentar a teoria e a prática de forma menos técnica. Neste caso, porém, o texto traz uma especificidade teórica e técnica, com o intuito de despertar o interesse daqueles que não são da área a se aproximarem da leitura dos pensadores da psicanálise. Ao mesmo tempo, compartilho o trabalho desenvolvido em grupos de parceiros, evidenciando o compromisso com a qualidade e a ética do meu exercício profissional.
Visitas: 64
Psicanálise Contextualizada 12/03/2025 13:56:09 63
Minhatrajetória com a psicanálise iniciou-se com Freud e os pós-freudianos MelanieKlein e Winnicott. No entanto, há pouco tempo comecei a visualizar novaspossibilidades para o meu exercício profissional, dentro da perspectivalacaniana. Entroem Lacan através do “De um Outro ao Outro” (livro 16)¹. Após a leitura desteseminário, posso dizer que Lacan já habita meu fazer psicológico, tanto para acl...
Psicanálise Contextualizada 03/06/2024 15:13:56
No dia 09 de Junho de 2024, comemoro 60 anos de idade. Cheguei na faixa etária de idoso ou começo a trilhar o caminho de um ancião? A única certeza é que poderei fazer uma carteira preferencial para poder estacionar em vagas de idosos e pagar meia-entrada em eventos pagos, tendo também o privilégio de filas especiais. Apesar de que, no caso das filas, este benefício já não está sendo muito vantajoso, uma vez que o quantitativo de cidadãos acima dos 60 anos de idade tem aumentado, tornando tais filas igualmente longas em certos casos.
Pensar em ser idoso, neste país, é uma referência que depende do histórico de trabalho e seus desgastes físicos; depende das condições financeiras de quem chega aos 60 anos; depende de onde mora, do que come, quais e quantos benefícios pôde usufruir até chegar nesta idade.
No meu caso, que há 33 anos atuo como Psicólogo que pouco se desgasta fisicamente em função deste trabalho, não encara sol, chuva e serviço braçal, usufruir de privilégios dos 60 anos é um contrassenso comparado a uma pessoa que sempre trabalhou com a força física e sujeita às intempéries climáticas. Mas, aqui, entra tanto uma questão de demanda política (aposentadoria, planos de saúde, etc) quanto, de alguma forma, no embate da pauta dos costumes, na qual as profissões vão se digladiar defendendo o desgaste existente em cada ofício conforme suas necessidades. A partir desta visão, para este texto, quero simplesmente refletir o conceito de Idoso e Ancião. E, a partir destes conceitos, propor uma reflexão sobre a questão da construção de expectativas emocionais a partir dos 60 anos como marco referencial.
Expectativas emocionais a partir dos 60 anos
Hoje mesmo, uma pessoa de 50 anos me disse que tem pavor de se pensar chegando aos 60, também duvidando da minha idade a partir da percepção de que me encontrava muito jovial. Esta pessoa, funcionária técnica de enfermagem em hospital público que trabalha desde os 18 anos na área, já se aposentou mas precisa continuar trabalhando em meio aos desgastes físicos dos múltiplos plantões hospitalares e também sofrimentos emocionais por presenciar mortes, situações de sofrimentos e um sistema de saúde precário para se trabalhar. Aos 50 anos, ela, de fato, já estava sentindo o peso de seu trabalho. Porém, eu, me expus muito pouco aos pesos do meu ofício e, consequentemente, tive condições de chegar aos 60 anos de idade com uma jovialidade física melhor.
Lógico que, para cada caso, uma realidade. Mas, no geral, quem mais vai sofrer o peso da idade são as profissões que requerem esforço contínuo, sem muita autonomia de ação e que estão sujeitas a regras pré-estabelecidas por terceiros. Sendo assim, esta ideia de igualar aposentadorias como se todos trabalhassem com os mesmos desgastes, é uma balela que ainda estamos muito longe de ver superada.
Mas vamos ao ponto.
Idoso...
Idoso é um representativo de algo que está ficando desgastado. É uma referência de algo que foi usado (inclusive dentro de uma perspectiva mercantilista) nesta sociedade cuja força-motriz é a Produção. Uma simbologia ocidental para entrar na curva declinante da existência. E, em muitas situações, uma peça descartada. É fácil percebermos isso diante do cenário de empregabilidade, no qual uma pessoa com 60 anos que se encontra desempregada e necessita continuar trabalhando (como é a maioria esmagadora de nossa sociedade), terá maior dificuldade de conquistar uma vaga ao enfrentar filas para entrevistas de emprego. Nesta condição, o desenvolvimento emocional para enfrentar a vida de idoso também vai seguir o mesmo desgaste, com o surgimento de sintomas do envelhecimento e uma baixa autoestima associada até com sentimentos de angústia e/ou pânico quando se projeta o futuro de uma morte cada vez mais próxima.
...ou ansião?
Ancião, por sua vez, remete a alguém que carrega uma história e que é visto como uma referência de memória, seja na família, na comunidade e no trabalho/profissão. O Ancião guarda a ancestralidade de um povo e de uma nação. Colocado em um patamar elevado dentro de uma comunidade indígena, para ser a preservação de um povo. Assim também são os Griôs em muitas comunidades e/ou territórios do continente africano, os quais têm pessoas anciãs contadoras de histórias, rememorando ancestralidades. E as poucas empresas que cultuam seus anciões, que deram origem ou fazem parte do corpo de trabalhadores na história da empresa, terão perspectivas perenes, mesmo sendo uma ocorrência rara num mercado financeiro de metas e produtividades competitivas. Na perspectiva Anciã, o desenrolar emocional configura em uma relação saudável com a conquista dos anos, pois será alguém necessário, referendado. Assim, a idade não implica em problema, pelo contrário: é algo que cria um devir, um desejo de alcançar.
A verdade da preservação da ancestralidade de um povo pode ser observada na História do Brasil, a qual, mesmo marcada por centenas de anos de dizimação de indígenas e grupos étnicos do continente africano, é permeada por povos e culturas que resistem e insistem, visto que seus anciãos continuam sendo referendados.
Chego aos meus 60 com um enorme desejo de alcançar idades mais avançadas para degustar o prazer de ser referência anciã no que desenvolvo. Entro nos 60 com projetos audaciosos e a noção de que colherei frutos para além dos meus 90. Não sou um Ancião por conta dos meus 60, mas começo a me organizar desde já para atingir este patamar. Começo meus 60 anos como se estivesse começando tudo do princípio e daí me renovo. O sintoma da minha idade é o desejo de desejar sempre.
Visitas: 1336
Psicanálise Contextualizada 03/06/2024 15:13:56 1335
Nodia 09 de Junho de 2024, comemoro 60 anos de idade. Cheguei na faixa etária deidoso ou começo a trilharo caminho de um ancião?A única certeza é que poderei fazer umacarteira preferencial para poder estacionar em vagas de idosos e pagar meia-entrada emeventos pagos, tendo também o privilégio de filas especiais. Apesar de que, nocaso das filas, este benefício já não está sendo muito vantajoso, um...
Psicanálise Contextualizada 27/10/2022 10:34:54
Este texto foi escrito em comemoração aos 30 anos de vida do meu filho mais velho, Samuel Iauany.
A chegada dos 30 anos de vida marca um momento de extrema importância na vida humana que é, ao menos dentro de estimativas e expectativas, o encontro com a plena maturidade biológica, psíquica, social e espiritual. Sabemos que nosso existir é traçado por etapas dentro de vários aspectos do desenvolvimento biológico, emocional e cognitivo, partindo da primeira infância e cruzando um trajeto marcado por segunda infância, pré-adolescência, adolescência propriamente dita, juventude, vida adulta até a fase idosa e a morte. A média de vida humana no Brasil é de 78 anos para mulheres e 74 anos para homens.
Nossa, chegou. Ufa!
Uma boa sensação por ver um filho chegar aos 30 anos. E chegar vivo, visto que muitos não conseguem fazê-lo por motivo de morte prematura. Depois, de notar como está, se autônomo ou ainda tentando um lugar ao sol num cenário brasileiro de jovens sem emprego, sem possibilidades de estudar e sem perspectivas profissionais.
Depois, se escolheu constituir família ou não, qual a condução de vida que construiu. Assim, a percepção de que aquilo que, como pais, projetamos desde o nascimento para o futuro deles, e que agora já possui a sua própria posição e escolhas. E se deparar com as escolhas do filho que podem não ser as mesmas escolhas do pai. Enfim: Reconhecer o distanciamento natural da maioridade plena, pontuada pelo fim da juventude aos 29 anos e pela plena possibilidade de assumir seus próprios atos.
30 anos e a plena entrada na vida adulta!
Eis que temos um legado da tradição judaico-cristã que nossa Sociedade absorveu com o Cristianismo: Jesus Cristo, um Judeu que, na sua tradição, podia assumir a vida pública a partir dos 30 anos. E é por este motivo que toda a narrativa cristã, a partir dos Evangelhos, descreve a saga de Jesus só a partir dos 30 anos, tendo um único fragmento de Jesus aos 12 anos, narrado na passagem de Jesus no templo pelo Evangelho de São Lucas pela caracterização também judaica do término da infância.
Nesta tradição, os trinta anos representam, de fato, a plena entrada na vida adulta. Agora já não é mais filho, mas um adulto que segue plenamente suas escolhas.
Se esta percepção é entendida pelos pais nesta nova etapa de vida do filho adulto, que já não precisa mais de um pai (principalmente se este já for pai também), o motivo de celebrar os 30 anos do filho se torna de puro agradecimento e plena felicidade. No entanto, se nesta etapa, o controle existencial sobre as escolhas do filho, seus atos e até sua situação financeira ainda bate à porta dos pais, os 30 anos passam a representar a angústia da perda e da morte. Principalmente se o filho assumiu seu projeto de vida e conseguiu se desvencilhar do pai.
Celebro a chegada dos 30 anos do meu filho Samuel em pleno momento em que, na campanha presidencial de 2022, há forte proposta da redução da maioridade penal de 18 anos para 16 e 17 anos por parte de um dos candidatos sob o argumento de que possa diminuir a violência no Brasil. Uma falácia que só trará ainda mais para baixo a busca por adolescentes para que entrem no crime (os de 14 e 15 anos) - Busca esta arquitetada por adultos que usam a juventude como massa de manobra no crime organizado. Tipo: “A culpa é dos jovens”.
E aqui aponto esta questão, visto que ela faz enorme diferença no processo de condução de crianças e jovens para chegarem a plena maioridade aos 30 anos, pois inverte-se as responsabilidades, jogando para aqueles que ainda estão em processo de formação, antecipando forçosamente responsabilidades para quem ainda não está plenamente amadurecido para tal.
Tal fator só fará o Estado se ausentar de suas responsabilidades de cuidar da juventude de seus cidadãos e de seu dever em dar-lhes totais condições para sua evolução natural até a plena maturidade, a tirando da cena do crime e colocando na Escola. Esta bomba no processo educacional dos filhos vai sobrar para a esmagadora maioria empobrecida. O filho de quem vai ficar preso? Do pobre, ou do rico? E aos que possuem estrutura econômica de proteger seus filhos, vai acentuar ainda mais o protecionismo educacional e, consequentemente, o processo de extensão do período maturacional dos mesmos.
Se o filho chega aos 30 anos, qual seria a melhor posição de um pai?
De não vê-lo mais como filho, na condição de quem ainda precisa de cuidado. Mas, sim, enxergá-lo como um amigo. Um parceiro na caminhada. Deixar de ser filho, pela genética, é impossível. Filho sempre será. Mas, na condição de proteção, o filho morre. Pode-se, para que esta elaboração seja melhor entendida, nominar que nasce um amigo/filho.
Lógico que será parceiro de caminhada se, na história de tal caminhada, o pai se fez parceiro. Se não se colocar presente e ao lado até chegar à plena vida adulta, provavelmente o pai ficará na mão, perderá o filho de qualquer maneira e ainda perderá a oportunidade de tê-lo como parceiro de caminhada.
Ao chegar aos 30 anos, um filho ainda não se sente maduro o suficiente para assumir a sua plena vida adulta. E isto já pode ser um sintoma de não-evolução. Lógico que, para toda a regra, há exceções, especialmente se tratando de processos educacionais e de vidas humanas. Aqui, o tempo por muitas vezes, é relativo. Porém, não podemos perder de vista o que é minimamente esperado no processo de formação do ser humano.
Em 28 de outubro de 2022, Samuel Iauany, que completa seus 30 anos, vem para meu referencial como um amigo, parceiro de caminhada. Pai da Luna e companheiro da Gabriela. Uma outra família que se estabelece e na qual desejo continuar unido nos vínculos afetivos.
Agora, mais uma família nesta configuração social em que ter famílias amigas ao redor é sempre bom.
Visitas: 906
Psicanálise Contextualizada 27/10/2022 10:34:54 905
Este texto foi escrito em comemoração aos 30 anos de vida domeu filho mais velho, Samuel Iauany. A chegada dos 30 anos de vida marca um momento de extremaimportância na vida humana que é, ao menos dentro de estimativas eexpectativas, o encontro com a plena maturidade biológica, psíquica, social eespiritual. Sabemos que nosso existir é traçado por etapas dentro de vários aspectos do desenvolvime...
Psicanálise Contextualizada 11/08/2022 11:09:39
O dia cinco de agosto de 2022 ficou triste pelo falecimento de Jô Soares, mesmo antes de sua morte ele tendo pedido que, ao morrer, aqueles que o consideram celebrassem o dia fazendo um brinde. Não podia deixar de ser uma indicação de um Humorista por vocação, que o dia de sua morte fosse momento para festejar. Aqui, quero apenas registrar minha homenagem ao Jô descrevendo três importantes ensinamentos dele que levo para a minha vida e que, de alguma forma, pautaram a construção de minha carreira profissional.
Valorizar o riso, a alegria
Ainda na minha adolescência, entre 1981 a 1985, desenvolvi personagens de humor para apresentar em eventos de grupos de jovens, dos quais participava pela Igreja Católica da Paróquia de São José do Rio Pardo-SP, onde me inspirava nos personagens do Jô, pelo programa “Viva o Gordo” na TV brasileira. Não perdia um. E, até hoje, quando sou solicitado para ministrar palestras de Psicologia, sempre faço umas tiradas engraçadas, às vezes até desenvolvo umas falas caricaturadas. Sempre dentro de um humor contextualizado, que fala, conscientiza. O Humor de Jô Soares sempre teve uma conotação reflexiva, nunca era humor pelo humor apenas. Mas sim, as reflexões, mesmo com uma conotação crítica, ficavam suaves.
Ser um leitor de conteúdos diversos, sede de conhecimento.
Jô Soares se colocava nas suas diversas formas de se apresentar, Humorista, Apresentador, Escritor, Músico, etc, como uma pessoa que pautava sua postura profissional pelo conhecimento. Gente, o cara lia de tudo e conhecia muito de muita coisa. Não era um especialista, mas um sujeito que passou para mim a ideia de “sede de conhecimento geral”. Por isso, ao se tornar apresentador, conseguiu fazer uma longa carreira com um grande público, pois sabia entrevistar como ninguém. Vejam a longa data do programa “Jô Soares Onze e meia” e depois “Programa do Jô”, que percorreram entre 1988 a 2016.
A Psicologia requer uma grande habilidade em entrevistar pessoas, por isso é uma profissão que se aproxima muito do Jornalismo. Neste sentido, pautei minha construção profissional buscando informações gerais, sempre durante a Universidade (UNESP de ASSIS-SP) assinei jornais de circulação nacional e os lia diariamente, assim como sempre tracei metas de leituras de livros mantendo diversidade de temas, desde os acadêmicos, aos espirituais e literários. Atender em Psicanálise um diversificado público requer amplo conhecimento geral, se não nossa escuta fica “manca”. E o Jô sempre foi uma referência quando eu tinha aqueles momentos de querer ficar de papo pro ar sem, ler nada, sem estudar, coisa que ficou mais desafiadora com a emergência da internet na palma da mão.
Ser múltiplo
Este ensinamento é um dos principais, pois no programa “Jô Soares Onze e Meia”, que nunca começava no horário, um de seus entrevistados - que não lembro quem agora - perguntou ao Jô como ele conseguia fazer várias coisas diversificadas ao mesmo tempo. E ele deu uma resposta que passou a ser um mantra para a minha vida, ele disse que não fazia diversas coisas, mas que fazia uma única coisa que é a comunicação. Disse ao entrevistado: “...sou uma pessoa da comunicação (...) a diferença é que comunico de diferentes formas...”. Desta resposta, procurei sempre fazer muitas coisas diferentes, potencializar múltiplas habilidades e na minha profissão me especializei em três áreas que aparentemente são distintas: Clínica pela Psicanálise, Educacional e Gestão de Pessoal-Organizacional, mas que na verdade são uma mesma coisa, a Psicologia. Tudo bem que atuo com muito foco na clínica, porém com amplo conhecimento nas três áreas. Hoje, inclusive, criei um método para acompanhamento de executivos, que denomino “Psicologia das Múltiplas Competências”
Sem dúvida, Jô Soares é uma destas personalidades que sempre esteve fora da curva, a meu ver, um gênio. O Brasil perde a sua presença, mas terá o legado de sua obra marcado na história. Ainda degustaremos por muitos anos os ensinamentos de Jô Soares.
De onde você estiver Jô Soares, rogai, olhai por nós. Muito obrigado por tudo!
Visitas: 1093
Psicanálise Contextualizada 11/08/2022 11:09:39 1092
O dia cinco de agostode 2022 ficou triste pelo falecimento de Jô Soares, mesmo antes de sua morteele tendo pedido que, ao morrer, aqueles que o consideram celebrassem o diafazendo um brinde. Não podia deixar de ser uma indicação de um Humorista porvocação, que o dia de sua morte fosse momento para festejar. Aqui, quero apenasregistrar minha homenagem ao Jô descrevendo três importantes ensinament...
Psicanálise Contextualizada 07/03/2022 18:22:56
O Dia Internacional da Mulher, a meu ver, precisa sempre iniciar com o “Silêncio Orante” pelas 130 mulheres que foram assassinadas dentro de uma fábrica têxtil, pois em 8 de março de 1911 na cidade de Nova York, enquanto as operárias faziam protesto dentro da fábrica por melhoria das condições de trabalho, sendo que a média diária de trabalho era de aproximadamente 14 horas por dia ininterruptamente, homens ateavam fogo por fora da fábrica, com as portas trancadas. Elas morreram asfixiadas.
Luto pelos milhares de mulheres que continuam sendo vítimas do feminicídio que é generalizado em todo o planeta. No Brasil de 2020 foram aproximadamente 648 mulheres assassinadas, representando um aumento de quase 2% em relação a 2019.
Celebrar é necessário, mas antes mesmo é necessário memorizar a história para ter significado de luta, para avançar na construção de uma sociedade com equidade entre mulheres e homens em todos os âmbitos e em todos os lugares. Temo, e fico com um “pé atrás”, quando vejo lojistas, mídia e jornalismo, trazendo uma maquiagem falseada de promoções, prêmios e paetês em torno deste dia. Uma isca do capitalismo de consumo em uma questão sócio crítica de luta.
Mulheres Negras
Aqui, remeto-me às reflexões de pensadoras negras no atual contexto da luta por uma sociedade antirracista, como as reflexões de Djamila Ribeiro, Ângela Davis, beel hooks e Lélia Gonzales, dentre muitas outras.
Estava esperando no semáforo de uma avenida da cidade de Vitória/ES onde resido, indo para minha clínica bem cedo, e observei um grande número de mulheres descendo de um coletivo e atravessando a faixa de pedestre. Logo entendi que se tratava de empregadas domésticas provenientes de bairros periféricos da cidade para trabalharem nas residências de suas mulheres patroas, pois logo ao lado havia um condomínio de muitos prédios de classe A, com cinco prédios de aproximadamente 20 andares, cujos apartamentos são avaliados em torno de um milhão e duzentos mil a um milhão e quinhentos mil. Consegui contar quantas mulheres eram negras e quantas eram brancas. Fiz uma amostragem indicada pelo Pesquisador e escritor Silvio Almeida, que em seu livro “Racismo estrutural” nos ajuda a perceber o racismo no Brasil. Mesmo tendo sido vendida, ao longo de nossa história, a ideia de que no Brasil não há racismo, Almeida indica fazermos esta breve contagem por percepção fenotípica. Nesta minha contagem no semáforo, observei entre 11 mulheres, 9 negras e 2 brancas, 81%. Lógico, que é uma percepção hipotética, contudo, supus serem trabalhadoras domésticas, Já que não seriam executivas descendo de um coletivo as 06h30min da manhã, chegando antes das 7h da manhã, para liberarem suas patroas para irem também o trabalho. As domésticas, com máscaras, saíram provavelmente entre 5h a 6h de suas casas, deixando seus filhos sabe-se lá com quem, num coletivo abarrotado de trabalhadores. As patroas, na sua quase totalidade, acredito, de carro e sem máscaras.
Nesta cena, pensei sobre o quanto que ser Mulher Negra neste país pesa absurdamente mais do que o ser Mulher em si.
As pensadoras e pesquisadoras negras emergentes na atualidade, principalmente as que militam na causa do feminismo negro, entendem que, na pirâmide de exclusão social, a mulher negra está no último escalão, sendo primeiro o homem branco, depois a mulher branca, depois o homem negro e depois a mulher negra. Com certeza, se formos acompanhar os ambientes de trabalhos das patroas das trabalhadoras domésticas, veremos que a proporção de mulheres brancas em relação às negras se inverte, quando comparada ao ambiente de trabalho doméstico. Veja você mesmo nos bancos, nas universidades, e inclusive nas escolas particulares, veremos um índice proporcional de quase 90% de mulheres brancas contra 10% de mulheres negras. É sempre bom lembrar que, no Brasil, 60% da população é afrodescendente.
Machismo Pessoal
Tenho dirigido muito, tanto na cidade como nas estradas, por conta do trabalho. Recentemente, percebi o meu machismo (é evidente que ele não aparece só nesta situação), coisa que tenho tentado fazer após ler o próprio Silvio Almeida dentro das demandas de práticas enraizadas na cultura que ele nomina de Estrutural, e associado a uma série de artigos e livros que tenho pautado meus estudos para a Clínica Psicológica em torno do machismo. Parto da indicação de não ter medo de se ver manifestando comportamentos machistas, pois a tendência dos homens é de negar o machismo. Eu me pego todos os dias em cenas machistas, e isso tem ajudado a me posicionar na construção do antimachismo e acredito que tenho melhorado. Hoje mesmo minha esposa disse que já melhorei muito nas minhas posturas machistas, e olha que ela é militante das causas feministas. Mas vamos à cena:
Estava na estrada em direção à cidade de Linhares/ES onde tenho uma clínica psicológica, e um veículo estava andando na velocidade, a meu ver lenta, e eu fiquei preso atrás deste veículo por um longo trecho que não permitia ultrapassagem, o que estava me deixando ansioso e irritado, pois tinha horário para começar a atender. Ao conseguir ultrapassar este veículo, dou uma buzinada reclamando, e, no veículo, quem dirigia era uma senhora, que desceu o vidro e deu um sorriso. Mas logo pensei em voz alta “Só podia ser mulher”. Este é um machismo estrutural, a noção de que os homens dirigem melhor que as mulheres e elas são “barbeiras” no volante. Mas depois pensei sobre este meu ato.
É um machismo estrutural, pois me lembro de uma cena na relação com meu pai que, dentre centenas de cenas machistas dele que presenciei, esta é uma clássica: estava varrendo a cozinha de casa a pedido de minha mãe que sempre colocava os filhos para fazer atividades de cuidado da casa. Minha mãe preparando a comida do almoço, e sempre meu pai chegava no horário certo para almoçar. Mas neste dia que estava varrendo a cozinha, meu pai resolveu chegar mais cedo e ai foi um inferno ao me ver varrendo a cozinha. Ele logo foi atacando a minha mãe dizendo: “Você vai deixar este menino ‘boiola’ (homossexual)”. Olhou para mim e disse: “sai daqui menino, vai brincar”. Eu achei ótimo, pois depois disto, nunca mais fiz nada na casa de minha mãe. Mas herdei um machismo estrutural que hoje custa muito caro para mim.
Esta parece uma cena ridícula de tão simples que é, mas o machismo é uma força comportamental coletiva que se fortalece pelas inúmeras e centenas e milhares de cenas mínimas como esta, que vai formando um conceito no modo de viver dos homens na sociedade e vai se avolumando até chegar no feminicídio coletivo.
Nesta posição de reconhecer o machismo estrutural, tenho indicado ações para homens tanto no ambiente familiar como no trabalho, no sentido de buscarem mecanismos de auto percepção do machismo pessoal e também de fazer ações de parceria com as mulheres. É muito comum, nós homens, que vivemos em um casamento dizermos com frequência que ajudamos nossas companheiras nas tarefas de casa, o que já é uma expressão machista. Ajudamos ou fazemos juntos?
Celebrar
Diante de um cenário nada animador, poderíamos dizer que as mulheres tem muito pouco a celebrar. Mas mesmo diante das adversidades, e das muitas conquistas que ainda estão por vir para as mulheres galgarem a equidade de direitos em relação aos homens, vale a pena celebrar sim. Celebrar as muitas conquista já realizadas.
Lembrei-me da célebre frase de Che Guevara: “Há que se manter na luta sem perder a ternura”. Por isto, vamos celebrar sim, com alegria, mais um Dia Internacional da Mulher, sem perder a utopia, o sonho e a esperança da conquista da tão sonhada equidade de direitos.
Feliz dia Internacional da Mulher !
Visitas: 893
Psicanálise Contextualizada 07/03/2022 18:22:56 892
ODia Internacional da Mulher, a meu ver, precisa sempre iniciar com o “SilêncioOrante” pelas 130 mulheres que foram assassinadas dentro de uma fábrica têxtil,pois em 8 de março de 1911 na cidade de Nova York, enquanto as operárias faziamprotesto dentro da fábrica por melhoria das condições de trabalho, sendo que amédia diária de trabalho era de aproximadamente 14 horas por diaininterruptamente, h...
Psicanálise Contextualizada 15/02/2022 09:04:06
Dando sequência a esta série de artigos e vídeos (veja o primeiro vídeo desta série), vou refletir a partir da construção desenvolvida pela pesquisadora Lélia Gonzalez, graduada em Geografia, História, Filosofia, pós-graduada em Antropologia, e desenvolvedora de estudos em Psicanálise. Fundou o Movimento Negro Unificado (MNU). Lélia sempre atuou na militância política tendo se candidatado a cargos legislativos, como foi na época para a Assembleia Constituinte em 1986. Um currículo invejável de uma das maiores referências para a construção da identidade do povo negro no Brasil, de modo especial pela sua esperança e profecia de ver o país como uma nação negra de fato.
Dentro de sua trajetória acadêmica, se aporta da teoria psicanalítica no sentido de entender a construção da identidade do negro na sociedade brasileira, pegando efeitos linguísticos da exploração da mulher negra, que neste texto será discutido a partir do livro organizado por Flávia Rios e Márcia Lima “Lélia Gonzalez - Por um feminismo afro-latino-americano”[1].
Neurose Cultural Brasileira
Neste sentido, começo com o conceito da Neurose Cultural Brasileira:
“O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira.” (Gonzalez, 2020, p. 76).
A partir deste conceito vamos observar o modo como Lélia Gonzalez utiliza da psicanálise para construir referências de entendimento da cultura, política, etnia e linguística na estruturação do povo negro no Brasil. Porém, vamos deixar a fundamentação deste conceito, e a forma com que Lélia Gonzalez o construiu a partir da psicanálise, para o próximo texto na sequência destes artigos.
Aqui vou trazer parte das muitas inquietações de Lélia na construção de seu pensamento. Um fragmento de percepção a partir de escolas públicas periféricas quando observava como a Psicologia era usada - e é usada até hoje - como instrumento de controle social e manutenção da elite dominante. Uma psicologia predominantemente eurocêntrica, aplicada por psicólogos brancos para enquadrar crianças negras tidas como “problemáticas”, para terem diagnósticos de distúrbios comportamentais e serem enquadradas em um padrão escolar europeu, diametralmente oposto à cultura e história do negro no Brasil, além de ser uma escola totalmente distante do contexto cultural das comunidades periféricas.
"Psicologia dos testes" é eficaz no ambiente educacional?
A origem da Psicologia no Brasil é europeia e iniciou sua trajetória na formatação de testar pessoas para identificar se elas eram ou não doentes mentais ou portadoras de alguma deficiência mental. Tanto que uma das áreas da Psicologia no Brasil que mais dá retorno financeiro aos profissionais Psicólogos é o campo de avaliação. Editoras e pesquisadores vivem produzindo pesquisas de testes nas mais variadas formas e áreas. Lélia cita esta psicologia dos testes para crianças nas escolas, que em sua quase totalidade as crianças negras eram encaminhadas para um departamento de avaliação mental, pois as professoras atribuíam que estas crianças não conseguiam se concentrar e eram muito “indisciplinadas”:
“...vale ressaltar que a maioria das crianças negras, nas escolas de primeiro grau, são vistas como indisciplinadas, dispersas, desajustadas ou pouco inteligentes. De um modo geral, são encaminhadas a postos de saúde mental para que psiquiatras e psicólogos as submetam a testes e tratamentos que as tornem ajustadas.” (Gonzalez, 2020, p. 39).
E continua, quando relata o sofrimento das mães diante das convocações da escola para as reuniões de pais cujo tema é mostrar o quanto seus filhos são um problema na escola:
“...E isso sem contar quando tem de acordar mais cedo (três ou quatro horas da manhã) para enfrentar as filas dos postos de assistência médica pública, para tratar de algum filho doente; ou então quando tem de ir às “reuniões de pais” nas escolas públicas, a fim de ouvir as queixas das professoras quanto aos problemas “psicológicos” de seus filhos, que apresentam um comportamento “desajustado” que os torna “dispersivos” ou incapazes de “bom rendimento escolar”.”(Gonzalez, 2020, p. 58-59).
Sendo especialista em Psicologia Escolar, sempre atuei em comunidades escolares. Até hoje há muita confusão dos professores e pedagogos para entender o papel do profissional de psicologia no equipamento educacional, até porque o sistema educacional não prioriza a formação contínua de seus técnicos, que muitas vezes ficam distantes das produções acadêmicas de pesquisadores brasileiros para a educação. Porém, na psicologia onde os profissionais podem atuar em diferentes áreas e os colocam em contínuo processo de formação, encontramos muitos deles trabalhando com o referencialde normatização. Também a categoria de psicólogos carrega este histórico de atuar no contexto clínico dos centros públicos de saúde mental que tinham a justificativa de testar. Mas na educação, hoje temos a especialidade do Psicólogo Escolar/Educacional que não tem como fundamento (ou não deveria ter), os referenciais clínicos de testagem.
Outro fator é a postura distanciada de muitos dos profissionais da psicologia, colaborando para que o olhar que os outros técnicos da educação têm sobre o papel dos profissionais da Psicologia seja simplesmente o de testar e convalidar as impressões que eles observam do comportamento das crianças. Inclusive muitos tendem a oferecer aos psicólogos recém-chegados uma sala na escola para atender os alunos problemáticos. Com o histórico e legado da psicologia de ser um instrumento de suporte de controle social a partir do referencial da elite dominante, de fato esta trama se dá sem que haja um senso crítico pela instituição escola e pelos psicólogos.
Outro ponto é o grande emergente de cursos de graduação em psicologia que oferecem muito pouca formação no campo da Psicologia Escolar/Educacional, pois a maioria dos cursos de Psicologia são de redes particulares e tem uma visão de inserção no mercado de trabalho, onde a projeção da categoria visa muito áreas que possam ter um melhor campo de trabalho, isso é, melhor remuneração. De fato, um choque de realidade, que causa um distanciamento entre a realidade dos técnicos da educação, que sofrem com baixos salários e pouco estímulo de formação, como um profissional que muitas vezes está em um equipamento educacional público como um trampolim para uma melhor possibilidade financeira de trabalho. A Especialização em Psicologia Escolar/Educacional ainda é pouco procurada também pela baixa perspectiva de emprego e remuneração. Recentemente estou passando por uma situação que grita o quanto os técnicos da educação estão sendo desestimulados a estarem nesta área. Ofereci um voluntariado para desenvolver um projeto de Psicologia Educacional em uma escola pública municipal de ensino fundamental, pois a diretora recém-eleita assim havia me pedido, mas a administração pública vetou toda forma de projetos que não sejam ligados aos da secretaria de educação, principalmente se envolver capacitação de técnicos. E um dos argumentos do governo municipal é ter que avançar na avaliação das crianças com problemas de aprendizado. Ai, novamente, entra o testador psicólogo para desovar a demanda “patológica reprimida”.
Intervenção prática da psicologia nas escolas
Minhas intervenções em escolas sempre foram pautadas pelo método participativo, de levar o coletivo da comunidade escolar que envolve pais, alunos, professores, técnicos da educação e funcionários, como também a comunidade onde a escola está inserida, para colaborar na percepção da realidade sócio-econômica-cultural daquela população, e atuar a partir desta percepção. Porém, ainda o modelo de testar, tratar e medicar as crianças está triunfando no sistema público e privado, com a diferença que no público a maioria dos “problemáticos” são as crianças negras, que passam a ser vistas desta forma por serem negras. As poucas crianças brancas nas escolas públicasnão são encaminhadas como “problemáticas” na mesma proporção de equivalência às crianças negras. E piora o cenário quando na escola os profissionais atribuem que estas crianças “problemáticas” são nascidas em famílias “desajustadas”, onde os pais não moram juntos.
Este contexto é muito bem representado no filme “O contador de histórias”, que retrata a vida de Roberto Carlos Ramos, uma criança da periferia de São Paulo cuja mãe queria oferecer um futuro melhor pela educação, assim o coloca na inaugurada FEBEM, Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (1964), acreditando que lá o filho estaria protegido da violência da comunidade periférica onde residiam. Uma cena no filme chama a atenção: duas psicólogas testando o menino, que ao ser “internado” na FEBEM, transformou-se em um verdadeiro produtor de “traquinagens”. As psicólogas estavam aplicando testes de inteligência com parâmetros europeus e testes projetivos com interpretações psicanalíticas para constatar que o garoto era de fato um problema. Assim, a FEBEM não era o problema, a desigualdade social e a exclusão não eram um problema, mas sim a criança negra. E as Psicólogas a serviço de um estado opressor e cruel com sua população.
Este cenário tendendo sempre a atribuir que os alunos problemáticos geralmente são de famílias desestruturadas, por exemplo, que não tem o pai e a mãe para cuidar, fora dos padrões da família nuclear europeia, levou-me ao livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” [2], de Carolina Maria de Jesus, esta mulher que é a precursora contemporânea urbana na construção da sociedade antirracista, que na década de 1960 traz a cruel realidade de uma favelada:
“...- Estes filhos são seus?
Olhei as crianças. Meu, era apenas dois. Mas como todos eram da mesma cor, afirmei que sim.
- Seu marido onde trabalha?
- Não tenho marido. E nem quero!...” (Jesus, 2014, p. 23)
Na sequência desta série, vou adentrar nos elementos teóricos que Lélia Gonzalezconstruiu o conceito “Neurose Cultural Brasileira”.
Visitas: 889
Psicanálise Contextualizada 15/02/2022 09:04:06 888
Dando sequência a estasérie de artigos e vídeos (veja o primeiro vídeo desta série), vou refletir apartir da construção desenvolvida pela pesquisadora Lélia Gonzalez, graduada emGeografia, História, Filosofia, pós-graduada em Antropologia, e desenvolvedorade estudos em Psicanálise. Fundou o Movimento Negro Unificado (MNU). Léliasempre atuou na militância política tendo se candidatado a cargosleg...
Psicanálise Contextualizada 10/02/2022 17:22:12
Inicio aqui uma série de textos com o título “Sociedade antirracista” que serão a base dos próximos vídeos publicados no meu canal no youtube: Abarca Psicólogo. Confira os vídeos na playlists: Psicologia e Sociedade antirracista
Esta minha iniciativa é resultado de uma série de leituras que realizei no ano de 2021 com a necessidade de conhecer o pensamento de pesquisadores negros do Brasil e do mundo, assim como literários negros, dentro de uma perspectiva de estar me preparando para engajar na luta antirracista. Fator que mexeu muito internamente comigo a partir de entrevistas que assisti da filósofa Djamila Ribeiro em diversos programas de TV e quando li seu livro “Pequeno Manual Antirracista”[1], onde ela traz esta luta para o coletivo, em que negros e brancos possam estar juntos nesta causa.
É preciso entender qual nosso papel e lugar diante desta luta
Sempre estive na militância pela causa antirracista, porém a partir das singelas palavras de Djamila Ribeiro percebi que precisava entender meu racismo estrutural e assumir que faço parte de uma camada da sociedade que é privilegiada. Pelo fato de ser branco, já sou um privilegiado. Assim brotou em mim a necessidade de me posicionar criticamente a partir de uma inserção mais sistematizada nesta causa. Vejam, que depois de 57 anos, e 31 anos de carreira profissional e pelo menos 40 anos militando em coletivos de movimentos negros contra o racismo, só agora identifiquei esta percepção de se ter que fazer a minha contínua autocrítica sobre manifestações do meu racismo estrutural e sobre ser um privilegiado nesta sociedade.
Atuar no movimento negro não me autoriza me sentir igual, pois sempre serei um privilegiado por ser branco. Por ser branco e trabalhar com teorias de base europeia, pela Psicanálise, observei nesta série de leituras que realizei que precisava de fato ouvir o pensamento dos muitos negros que sempre produziram Filosofia, Sociologia, Psicologia, Economia, Direito, etc, a partir dos referenciais da cultura negra, diáspora, afro descendente, mas teorias que eu não estava bebendo na fonte. Fui provocado a sair de minha zona de conforto de acreditar que só se autodeclarar antirracista e militar nesta luta em parcerias com muitos movimentos negros ao longo de minha história, me credenciava a pensar que estava sendo diferente.
Quando Djamila Ribeiro empenha esforços na luta antirracista convocando a sociedade como um todo nesta empreitada “... Afinal, o antirracismo é uma luta de todos e todas.” ( Ribeiro, 2019, p. 15). E manda um recado aos brancos, como eu, dizendo: “Pessoas brancas devem se responsabilizar pelo sistema de opressão que as privilegia historicamente, produzindo desigualdades, e pessoas negras podem se conscientizar dos processos históricos para não reproduzi-los. Este livro é uma pequena contribuição para estimular o autoconhecimento e a construção de práticas antirracistas”. (Ribeiro, 2019, p. 108), me sinto motivado a entrar nessa luta.
O branco se responsabilizar pelo sistema de
opressão que nos privilegia é de fato uma mudança de paradigma, pois geralmente
temos a tendência de jogar a “culpa” no passado e não assumirmos que somos,
enquanto brancos, partícipes da construção deste sistema de opressão. Comecei a
entender que se auto responsabilizar é se colocar na percepção da extrema
desigualdade entre brancos e negros, é reconhecer os múltiplos privilégios de
ser branco e não jogar esta luta para aqueles que se sentem vítimas, como se
esta luta não fosse minha. Não basta dizer que é antirracista, é preciso dar a
cara para bater na defesa pela sociedade antirracista. Mas, na minha condição
de branco, nunca deixar de ver e entender que sou um privilegiado. Pedir
licença à população negra e aos múltiplos movimentos empenhados nesta causa,
para poder participar desta empreitada pela sociedade antirracista.
Como a Psicologia responde a essa dor?
Ao longo de minha carreira como Psicólogo, que perpassa 31 anos de um trabalho de escuta para crianças, adolescentes e adultos pelo viés da Psicanálise, com atuação em sistema público, privado e pelo viés das Organizações Não Governamentais, acabei escolhendo priorizar teorias europeias, de brancos, como é o caso da Psicanálise, da Filosofia, Pedagogia, Sociologia. Pior ainda, levando esta formação às várias realidades sociais periféricas, jogando “goela” abaixo esquemas psicológicos que sempre tinham e tem referência ao padrão de família europeia, que ficou estabelecida numa família restritiva nuclear construída a partir da Revolução Industrial. Como branco privilegiado, levando a formação às camadas populares na sua maioria absoluta de negros, uma teoria para brancos. Negando a história, a raiz e os traços tribais da África Negra que foram dizimadas pelo processo de escravatura portuguesa. Vejam, como que achando que estava fazendo uma boa ação, estava na verdade contribuindo para a perpetuação de teorias europeias dos colonizadores.
A Europa sitiava a exploração do continente africano autorizando o comércio livre na região do Congo e Níger através da Conferência de Berlim em 1884/1885, distribuindo estas regiões da África Negra a ser explorada pelos países europeus. Freud que começa a emergir neste período e tem o marco de início da Psicanálise na publicação do livro “A Interpretação dos Sonhos” (1900) e Lacan, que constrói novos referenciais para a Psicanálise a partir de 1934 na França, não abordam diretamente o racismo e a exploração da mão de obra escrava negra no período da escravatura, como elemento de sofrimento emocional (Pelo menos até agora nunca encontrei algo deles escrito de forma aberta e transparente), mesmo eles estando no epicentro da Europa e vivenciando o histórico saque comercial dos países europeus na África Negra.
Pela teoria Psicanalítica estrutural os vínculos afetivos são organizados de forma semelhante nas diversas realidades do planeta. Sempre a partir da família nuclear forjada pela revolução industrial de um modelo europeu. Não vemos nestes autores um enfoque na ordem de um modelo tribal, como é a base da estrutura familiar dos povos da África Negra quando a Europa invade o continente africano para capturar os negros como animais, separando pessoas de suas tribos, etnias, regiões. Separando familiares de laços consanguíneos para que ao chegarem no Brasil, não tivessem problemas com revoluções internas, insurreições.
No entanto, temos psicanalistas negros debruçados na construção de referenciais para que esta teoria possa servir para auxiliar na formação identitária do negro, resgatando a autoestima e o desejo de fazer acontecer uma sociedade justa e igualitária, que no Brasil precisa passar pela equidade da população negra que é a maioria. Mas são produções que pouco são exploradas no meio psicanalítico.
Novos caminhos para uma Psicanálise mais plural!
Já produziu ampla reflexão sobre os traços culturais do negro no Brasil a pesquisadora Lélia Gonzales, que inclusive não deixa de se utilizar da teoria Psicanalítica para interpretar o fenômeno dos vínculos afetivos a partir das mulheres negras “amas de leite”, nas casas dos brancos escravagistas, fator que vou aprofundar no próximo texto. Também Djamila Ribeiro vai beber da fonte da Filosofia de uma mulher branca e francesa Simone de Beauvoir para respaldar a construção de um pensamento feminista na luta do Feminismo Negro. Ambas não ficam simplesmente reproduzindo uma teoria, como fazem a quase totalidade dos psicanalistas no Brasil, como eu até então, mas sim utilizam como meio para se transformar um olhar e construir novos referenciais.
Assim como argumenta
Silvio Almeida em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura transmitido ao
vivo no dia 22/06/2020, quando é questionado que em sua obra “Racismo
Estrutural” se utiliza de muitos teóricos europeus para construir seu
pensamento, no que ele lembra que a ciência é produzida na Universidade que tem
suas exigências técnicas de pesquisa e são de origem europeia. Silvio Almeida
afirma que, inclusive na academia, para ser pesquisador negro é preciso mostrar
amplo conhecimento das teorias que são referenciadas pela academia, na sua
quase totalidade de brancos europeus, além de se ter um amplo conhecimento da
cultura histórica da África Negra e de todos os detalhes do período de
escravatura no Brasil, sendo que o crivo de exigência acadêmica para um negro
pesquisador é maior do que para um branco. Enfim, para ser reconhecido um
pesquisador negro tem que ser bom mesmo. É neste contexto que Dijamila Ribeiro
se empenha em mostrar que a força do negro não deve estar apenas no futebol, na
força de um corpo esbelto ou no seu gingado, no seu samba no pé, é preciso
mostrar que negro produz ciência de qualidade.
Ao estar inserido nesta causa não apenas por palavras, mas com ações, fui deparando-me com meu racismo estrutural. Cito uma situação de estar realizando um curso de formação para pais e educadores em uma comunidade periférica, fazendo a exposição do conceito “Mãe suficientemente boa”, desenvolvido pelo Psicanalista D. Winnicott que é um branco Inglês, e no decorrer da fala tive a intervenção de uma mãe jovem, negra, amamentando o filho na hora da formação, dizendo que esta teoria servia para as mulheres brancas da Inglaterra, com casa, dinheiro e assistência à saúde. - “Para nós negros da periferia do Brasil, que precisamos sair para trabalhar quando o dia ainda está escuro e chegamos no barraco à noite quando já escureceu, “Mãe suficientemente boa” nunca vai existir”. Aí, caiu a ficha, mesmo estando inserido na luta antirracista, sou um privilegiado falando de teorias de privilegiados para uma população excluída de privilégios.
Mas hoje entendo que para estar nesta luta antirracista na condição de branco, é preciso a contínua percepção de meu racismo estrutural que se manifesta sutilmente em pequenos atos. E também estar sempre atento que mesmo que eu queira estar junto, estarei sempre sendo um privilegiado no meio. Desta e de muitas outras vivencias que fui levantando ao longo da minha prática como Psicólogo comecei a sistematizar um método de trabalho que estou nominando “Psicanálise Contextualizada”, onde eu posso reordenar a forma de agir trazendo os pensadores negros neste processo.
Uma luta de todos e todas!
Nesta série vamos refletir a partir de Djamila Ribeiro, que veio depois de muitos outros nomes, mas na atual realidade brasileira abriu um espectro de penetração na sociedade para os pensadores e literários negros, principalmente ao coordenar a coleção “Feminismos Plurais” da editora Jandaíra que vem colaborando para a publicação de dezenas de livros escritos por pessoas que até então não tinham tanto alcance, ou sendo lidos apenas por pesquisadores em Universidades. Passarei por Carolina Maria de Jesus, a precursora; tendo em Lélia Gonzalez a força intelectual da mulher negra na Universidade, pelos estudos em filosofia, antropologia e psicanálise e na luta política; os pensamentos do Antropólogo Rodney Willians; do Advogado Silvio Almeida; da filósofa afro americana Angela Davis; da pensadora também afro americana bell hooks; do Psiquiatra Frans Fanon; do Geógrafo Milton Santos; do ator Lázaro Ramos; das literárias/os Maryse Condé, Chimamanda, Itamar Vieira Junior, Jhon Conceito (Akiri Conakri). Também passarei por pensadores brancos que embarcaram nesta causa como o Sociólogo Jessé de Souza, que me ajudou a ver o quanto pensadores brancos consolidaram a falsa ideia da democracia racial brasileira, e assim também utilizei nestes estudos o critério de buscar informações de pesquisadores que conseguiram desenvolver pesquisas sem falsos estereótipos, neste sentido também busquei pelos estudos do Economista Celso Furtado e o Jornalista Laurentino Gomes ( mesmo este tendo sua obra amplamente questionada, inclusive por mim, preza pelo arcabouço de dados históricos que foram resgatados em sua ampla pesquisa do período de escravatura no Brasil).
Enfim, uma jornada que desejo e quero trilhar, entendendo que ao produzir estes textos para o site e os vídeos pelo youtube é uma forma de engajamento na luta por uma sociedade antirracista. Assim, meu desejo é transformado em esperança de esperançar, como já preconizou Paulo Freire, na construção da sociedade antirracista.
Visitas: 1138
Psicanálise Contextualizada 10/02/2022 17:22:12 1137
Inicio aqui uma sériede textos com o título “Sociedade antirracista” que serão a base dos próximosvídeos publicados no meu canal no youtube: Abarca Psicólogo. Confira os vídeosna playlists: Psicologia e Sociedade antirracista Estaminha iniciativa é resultado de uma série de leituras que realizei no ano de2021 com a necessidade de conhecer o pensamento de pesquisadores negros doBrasil e do mundo...
Psicanálise Contextualizada 07/02/2022 17:35:17
Este texto nasce de uma primeira solicitação que meu filho Samuel e sua parceira Gabriela fizeram, em janeiro de 2019, para que eu e minha parceira Maria Celina fizéssemos a celebração de casamento deles, na cidade de Ribeirão Preto-SP. O argumento usado na época foi que tínhamos uma longa história de participação na Igreja Católica e que gostariam que fizéssemos um ritual com uma espiritualidade aberta, sem caráter religioso, pois não seria uma celebração religiosa em si, mas algo para marcar o momento entre amigos e parentes. Outra argumentação foi de que muitos dos convidados não tinham prática religiosa e muitos até eram ateus, além de outros serem de diversas religiões. Topamos, e de fato foi uma experiência que nos levou a entender que o desejo de união conjugal prescinde de alguma forma a espiritualidade. O amor vivenciado e partilhado entre duas pessoas que desejam estabelecer uma parceria, fruto de um romance, um vínculo amoroso, já é um estado de espiritualidade.
Depois, mais recente, neste janeiro de 2022, também outro casal de jovens chegou-nos com a mesma solicitação de celebrarmos um casamento sem a conotação religiosa, com quase os mesmos argumentos de Samuel e Gabriela em 2019. Desta vez foi o casal Tamires e Mauro, que residem em Guarapari-ES . Também topamos e, nesta oportunidade, tivemos uma grata surpresa: um casal de padrinhos era de união homoafetiva masculina. Uma presença que de fato tornaria muito difícil de ser permitida em um culto institucional religioso de base Cristã, tendo em vista que Tamires vem de uma família Católica e Mauro da Igreja Batista, mas não estão praticando religião no momento.
O embasamento que escolhemos para dar suporte significante ao ato celebrativo foi escolher um Judeu tido como ateu, Freud, o pai da Psicanálise; um ex-pastor Presbiteriano, Rubem Alves, um dos maiores Filósofos do Brasil; e uma mulher Católica, Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, que preconiza a “construção da Civilização do Amor”. Desta forma, elaborei assim o momento de reflexão, tanto na celebração do casamento do Samuel e Gabriela como para Tamires e Mauro:
A espiritualidade do amor a partir de Freud
Em “O Mal estar na civilização”, texto de 1930, Freud reflete que a própria civilização que nasce para trazer o bem-estar ao cidadão, acaba tirando dele a possibilidade de uma vida plena, colocando o ser humano em contínuo processo de frustrações, ou em um contínuo sentimento de insatisfação, angústia, sofrimento emocional. A saída que Freud vê nas ações humanas para se superar este mal-estar é a prática religiosa, que traz em si a promessa de uma vida plena, porém muito distante da realidade civilizatória que frustra. Freud chega a citar uma possibilidade de superação deste mal-estar quando cita o exemplo da vida vivida por São Francisco de Assis, que foi pautada por um amor absoluto e totalmente despretensioso. Interessante que Freud sendo um Judeu, e ateu, cita um ícone humano da prática do amor, que é um Santo Católico. Na célebre poesia de São Francisco: “Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado... Amar e ser amado”. Um paradigma inverso ao processo civilizatório que preconiza o bem-estar coletivo priorizando a minoria das elites. Uma promessa vazia. Freud assim afirma que há no Amor, a possibilidade de que o mal-estar na civilização se supere.
A espiritualidade do amor a partir de Rubem Alves
Já em Rubem Alves, quando elabora pensamentos em torno da vida conjugal, distingui dois tipos de vivência, trazendo como figura de linguagem o jogo de tênis e o jogo de frescobol. No tênis, duas pessoas jogam para um vencer e o outro ser derrotado. No tênis, a bolinha deve seguir uma trajetória que o outro não alcance, ou que o outro erre, é uma disputa. Relacionamentos parecidos com o jogo de tênis são continuamente conflituosos, onde há disputa de poder e um tentando destruir o outro, ou como se fala atualmente, relacionamentos tóxicos. Já no jogo de frescobol, a dupla é tida como boa quando um sempre joga a bola para o outro acertar, há uma sincronia entre os jogadores, aqueles que assistem ficam até admirados com tamanha harmonia entre os dois. Assim, casais que vivenciam a parceria conjugal como no jogo de frescobol, tendem a estabelecer um relacionamento saudável. Aqui vem esta dinâmica da reciprocidade que é inerente ao amor.
A espiritualidade do amor a partir de Chiara Lubich
Já em Chiara Lubich, ela vai traçar a percepção que deu o nome de “Fio de ouro”, pois ao observar as práticas das principais religiões no planeta, ela constatou que em todas elas o amor é o centro de convergência, dentro da perspectiva de não fazer ao outro aquilo que você não gostaria que fosse feito a você, como também de fazer ao outro aquilo que gostaria que fosse feito a você. Com este pensamento, Chiara Lubich perseguiu sua vida buscando a integração entre os diferentes líderes religiosos, preconizando a construção da “Civilização do Amor”. E nesta perspectiva, o casal que cultivar a prática do amor para além de suas necessidades pessoais, transportando para a sociedade, terá melhores condições de superar os obstáculos inerentes de uma família que se estrutura a partir do sim de um casal.
A espiritualidade do amor como o centro da relação do casal
Vejam que para diferentes pensadores, com diferentes posturas e práticas religiosas, o Amor é o centro argumentativo para o estabelecimento da espiritualidade conjugal. Neste sentido, a espiritualidade está, em si, na prática do amor, que não necessariamente precisa estar em uma prática religiosa. Por isso que muitos que praticam religião não conjugam a espiritualidade do amor, e muitos que não praticam religião conjugam a espiritualidade na vivência do amor. Desse modo, um ateu pode ser uma pessoa com muita espiritualidade se conjuga a prática do amor.
Lembrando que conjugar a prática do amor não
significa viver sempre praticando o amor, pois de alguma forma estamos em um
processo civilizatório que individualiza as pessoas para o amor a si mesmo,
assim, deixando-nos expostos para a quebra desta espiritualidade, puxando-nos
às necessidades apenas pessoais, é o tal do “cai e levanta/erra e acerta”. Mas
aqui estamos falando do amor que brota no encontro com o outro, nesta troca,
que precisa ser relembrado a cada dia. Neste sentido, marcar o início de uma
vida conjugal com um marco simbólico celebrativo tem este valor de referência,
ponto de partida.
Ao prometerem o amor na celebração do casamento, dentro da formatação que os noivos nos solicitaram, não podemos deixar de lembrar que é uma forma de assumir, num coletivo, este compromisso de amor diante de amigos, parentes e padrinhos, sabendo que é um devir, um desejo. Pois mesmo que se prometa a vivência da espiritualidade do amor para sempre, o amanhã não existe. O ontem passou. O que existe é o hoje. Todas essas promessas só valem mesmo pelas vinte e quatro horas vividas. Mas se o casal tem como princípio a espiritualidade do amor, já representam um casal desejoso, esperançoso, ávidos para viver intensamente esta espiritualidade.
Visitas: 1407
Psicanálise Contextualizada 07/02/2022 17:35:17 1406
Este texto nasce de uma primeira solicitação quemeu filho Samuel e sua parceira Gabriela fizeram, em janeiro de 2019, para queeu e minha parceira Maria Celina fizéssemos a celebração de casamento deles, nacidade de Ribeirão Preto-SP. O argumento usado na época foi que tínhamos umalonga história de participação na Igreja Católica e que gostariam quefizéssemos um ritual com uma espiritualidade aber...
Psicanálise Contextualizada 03/11/2021 17:40:12
Em 1882 um dos maiores clássicos da literatura brasileira era publicado e ninguém melhor do que Machado de Assis para escrever esta obra prima: “O Alienista”. Li este livro pela primeira vez em 1985, na época do meu pré-vestibular, por fazer parte da lista de livros que eram indicados para as provas de língua portuguesa.
Recentemente fiz esta releitura, desta vez, com toda a minha trajetória na Psicologia, 35 anos inserido nos aprofundamentos da Psicologia como Ciência e Profissão, leio “O Alienista”[i] com um novo olhar. Um olhar de quem tem a certeza de que no Brasil a vida segue do mesmo jeito que no ano de publicação desta obra.
Ontem, o poder público facilitando a vida de especuladores médicos, concedendo favorecimentos para intervenções na saúde, hoje com o desenrolar da CPI do COVID-19 no Senado, o escândalo de favorecimentos à grupos de medicinas para intervenções na pandemia que estão levando a óbito milhares de brasileiros.
Ontem, um Simão Bacamarte, que em nome da ciência, da cura e da missão de limpar a cidade da ameaça dos “loucos” que a cada dia a invadiam, que tem aprovação de seus atos pela Câmara Municipal de Itaguaí/RJ, cenário construído no romance de Machado de Assis. Hoje, o plano de saúde Prevent Senior que foi alvo de investigação por indicarem procedimentos de prevenção ao COVID-19 sem reconhecimento científico, fora muitos outros procedimentos em saúde que aconteceram pelo Brasil afora que na desgraça alheia tiveram lucros em plena pandemia, sempre se utilizando do sistema de saúde pública.
Machado de Assis trás em O Alienista, um corte específico da intervenção especulativa da medicina e do favorecimento público sobre a doença coletiva, a demanda da saúde mental. No meu segundo ano cursando Psicologia na UNESP de Assis/SP, participei do Primeiro Congresso Brasileiro pela Luta Anti Manicomial que aconteceu nas instalações da UNESP de Bauru em 1986. Neste congresso iniciava a incansável luta dos trabalhadores do sistema de saúde mental público pela humanização dos manicômios e a abertura dos mesmos. Questão que ganhou força na Lei Paulo Delgado 10216 de 2001, que instituiu um novo modelo de tratamento aos portadores de transtornos mentais no Brasil. Eu tive uma boa experiência no ano de 1987 onde trabalhei por quase três meses na condição de estagiário no manicômio estadual da cidade de Casa Branca/ES, na época eram 1200 internos, sendo que 80% deles não se tinha o paradeiro, pois foram despejados neste manicômio no período do regime militar de 1964 a 1985.
O Alienista (aquele ou aquela que trata de indivíduos com transtornos mentais), com uma posição de caridade, com a fina intenção de ajudar aqueles que sofrem por uma dor na alma, se aproveita da fragilidade destes sofredores e da angústia de suas famílias que não sabem lidar com a “loucura”, propõe que a Câmara Municipal favoreça a estruturação de um espaço especializado (manicômio), que na obra leva o nome de “Casa Verde”.
Os manicômios de ontem são hoje as clínicas psiquiátricas, que na maioria delas acabam sendo subsidiadas pelo órgão público, que por medidas cautelares fazem com que o estado tenha que financiar muitos tratamentos daqueles que não podem pagar; também podem ser comparados com os consultórios psiquiátricos de hoje, principalmente nos esquemas que observamos na saúde pública dos municípios em que contratam psiquiatras para diagnosticar e medicar, sem um projeto de saúde mental nos moldes de assistência contínua e humanitária previstas pela Lei Paulo Delgado.
Conheço vários Psiquiatras que rodam em vários municípios concomitantemente fazendo este tipo de procedimento. Até presenciei um fato em que o Psiquiatra antes de tirar férias de um dos muitos municípios que atuava, deixava uma lista enorme de receitas assinadas para serem distribuídas no período de suas férias.
Veja este trecho da obra: “Que importa? Temos ganho muito – disse o marido (...) D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via láctea de algarismo.”[ii]. Aqui, o alienista dialoga com sua esposa sobre a possibilidade de realizar despesas de lazer da família, por ocasião do lucro que a “Casa Verde” já estava registrando.
Este cenário me remontou a um período e que alguns médicos me ofereceram sociedade em uma clínica de recuperação de dependentes químicos, com o argumento de que eu entendia bem de tratamento para dependentes, pois já havia atuado em comunidades terapêuticas do gênero e por que seriam estabelecidos parcerias com prefeituras de toda a região. Na época, refutei tal proposta por ver com clareza o caráter mercantilista com verba pública.
Ao longo dos meus trinta anos de carreira, que foram vivenciados quase sempre em cidades de interior, recebi muitos pacientes que solicitavam minha intervenção por que as famílias estavam negociando apoios de câmaras municipais, fator que sempre refutei também. Enquanto lutávamos para a implantação no SUS da Lei Paulo Delgado, as movimentações espúrias por parte de profissionais da saúde e também de políticos, puxavam para manutenção de um sistema de saúde mental de lucratividade para a medicina e favorecimentos aos políticos. Como em O Alienista este cenário é retratado de forma até humorística. Depois de 140 anos temos um cenário muito parecido.
Ainda quero trazer aqui mais uma faceta do livro de Machado de Assis,
que é sobre o quanto a especulação diagnóstica sobre os transtornos mentais,
associando a obsessão de Simão Bacamarte em decifrar o perfil da loucura de
cada sujeito que ele definia que precisava ser internado na “Casa Verde” de
ontem, com os processos diagnósticos a partir do CID 10 e DSM V para transtornos
emocionais, que se faz atualmente. Brinco que dificilmente um sujeito sai de
uma consulta Psiquiátrica sem ser medicado.
Mas quero trazer aqui a referência mais escandalosa que tenho presenciado, que é o enquadre de crianças no Transtorno do Espectro Autista, onde se abriu um leque tão enorme de sintomas que cria o enquadramento de muitas crianças neste espectro, levando as escolas a ficarem enlouquecidas para tentarem adaptar o processo educacional a esta demanda, com o desalento de ter um Ministério Público exigindo a inclusão. Lógico que é necessária a inclusão, mas a partir de qual diagnóstico? Na “Casa Verde” de Itaguaí, o Alienista viu sua casa desmoronar por pressão da população quando quase toda a cidade estava internada por algum diagnóstico do Alienista. Hoje, nas escolas, estamos vendo um crescente número de crianças “Laudadas” (diagnósticos superficiais) levando as escolas a serem o novo espectro manicomial da sociedade moderna.
O Alienista é uma obra tão impactante, que na edição atual que fiz minha releitura, editada pela editora Antofágica, Daniele Lima, Filósofa e pesquisadora da obra de Michel Foucault levanta a hipótese de que Foucault tenha lido O Alienista para embasar seu pensamento filosófico sobre a produção da loucura e os processos de cárceres manicomiais.
Enfim, uma obra a ser muito explorada, de um escritor que pensou para muito além de seu tempo, Machado de Assis.
Visitas: 1797
Autor:
Psicanálise Contextualizada 03/11/2021 17:40:12 1796
Em 1882 um dos maiores clássicos da literatura brasileira era publicadoe ninguém melhor do que Machado de Assis para escrever esta obra prima: “OAlienista”. Li este livro pela primeira vez em 1985, na época do meu pré-vestibular,por fazer parte da lista de livros que eram indicados para as provas de línguaportuguesa. Recentemente fiz esta releitura, desta vez, com toda a minha trajetóriana P...
Psicanálise Contextualizada 28/09/2021 11:32:14
Visitas: 874
Autor:
Psicanálise Contextualizada 28/09/2021 11:32:14 873
Esta é uma realidade crescente no Brasil e que os dados estatísticos não conseguem acompanhar em tempo real, pois o tema suicídio ainda é visto como tabu e muitos setores da mídia entendem que, se falarem muito deste tema, podem incentivar o aumento de casos. A meu ver é um erro grotesco imaginar que trazer números atualizados sobre o suicídio juvenil no Brasil pode aumentar o número de casos. Ao...
Psicanálise Contextualizada 11/08/2021 15:11:02
Neste dia dos pais de 2021 recebi três presentes em espécie dos meus três filhos, Samuel Iauany, Davi Taynã e Helder Manacô. Os três fizeram uma “vaquinha financeira” e escolheram três peças temáticas: duas regatas para corrida, um vinho português e um par de chinelos. Sempre incentivamos esta prática na vida de nossos filhos, no dia das mães eu comprava um presente para cada um ofertar para minha esposa INA, e ela fazia o mesmo no dia dos pais. Depois, já na adolescência, eles iam até as lojas e já escolhiam. Agora, depois que tornaram jovens adultos, já se propõem a compor uma “vaquinha” financeira para tal.
Até aí, nada de novidade. Ajudamos o ciclo mercantilista destas datas, mas com certeza colaboramos para o comércio, que emprega muita gente.
A diferença neste ano foi que cada um dos filhos registrou em palavras escritas uma bela mensagem para externar o sentimento do dia dos pais. Nossa! Aí a sensação foi muito boa. Os presentes sempre são bem-vindos, ainda mais se utilitários. No mesmo dia, à noite, já fui correr com uma das regatas que ganhei. Mas a escrita do sentimento filial ao pai está cravada na existência da alma. É de fato uma massagem na alma.
Aqui, deixo registradas as mensagens:
"Ser pai é estar sempre presente na vida dos filhos, seja do jeito que for, e nunca parar de idealizar o melhor para eles. Ser pai é estar aberto para aprender durante o caminho, e entender que essa é a melhor maneira de ensinar também. Ser pai é tentar sempre estar na melhor versão, pra mostrar que nunca devemos parar de correr atrás! Ser pai é tudo isso que eu aprendi com você, obrigado por ser um exemplo! Te amo." (Davi Taynã, 24 anos)
"Pai, Um bom vinho para as noites de música e partilha com a coroa. Um par de chinelos na sua caminhada da vida. E as regatas para você continuar cuidando de sua saúde. Quero dizer que olho para você com muito amor e carinho, só tenho o que agradecer a você. Tive a sorte de ser abençoada com um pai que move montanhas para ver sua família bem. Obrigado por tudo e que você tenha um maravilhoso dia dos pais. Te amo." (Helder Manacô, 19 anos)
Este dizer escrevendo é sentimento preso. A escrita crava o que por palavras o vento pode levar. Chegar à vida adulta dos filhos recebendo estas belas declarações dá a sensação de que eles estão no caminho da construção da autonomia pessoal.
A paternidade é uma escolha e é um legado de cada pai. Assim, sou pai de três filhos. Mas os filhos na vida adulta já não são meus e nunca foram. Simplesmente emprestei minha vocação de pai e minha escolha de paternidade para ajudar três cidadãos a trilharem seus próprios destinos a partir de suas escolhas pessoais. Mas muito agrada a um pai ver que os filhos, já na vida adulta, escolhem também referenciar o pai como alguém que ajudou e ajuda a estruturar os alicerces deles.
Sempre incentivei meus filhos nesta arte de escrever sentimentos, ou pela escrita corrente ou por alguma expressão artística. Pois este legado humano da escrita, que faz a história perpassar, é a possibilidade de se fixar sentimentos.
Hoje, eles escrevem bem e podem utilizar esta
facilidade para continuarem a expressar sentimentos. Quem sabe de também um dia
trilharem este ciclo de uma paternidade amorosa (fato que o Samuel Iauany já
iniciou gerando a neta Luna), capaz de verbalizar e deixar registrado na
escrita para que eles desejarem o profundo sentimento do EU TE AMO.
Visitas: 886
Autor:
Psicanálise Contextualizada 11/08/2021 15:11:02 885
Neste dia dos pais de 2021 recebi três presentes emespécie dos meus três filhos, Samuel Iauany, Davi Taynã e Helder Manacô. Ostrês fizeram uma “vaquinha financeira” e escolheram três peças temáticas: duasregatas para corrida, um vinho português e um par de chinelos. Sempreincentivamos esta prática na vida de nossos filhos, no dia das mães eu compravaum presente para cada um ofertar para minha es...
Psicanálise Contextualizada 02/06/2021 12:35:43
A Psicanálise em Winnicott de fato vai para além das demandas de estrutura psíquica do indivíduo e extrapola os limites da clínica psicológica. Desde o primeiro vídeo no meu canal do Youtube, até os textos que acompanham cada vídeo no meu site (O pensamento de Winnicott), vamos observando a versatilidade e amplitude de extensão para diferentes áreas da sociedade. Aqui, temos a possibilidade de observar alguns fragmentos sobre democracia, num tempo brasileiro onde estamos sob ameaças ao nosso tão frágil sistema democrático.
“Parece possível encontrar um conteúdo latente importante no termo “democracia”, qual seja, de que uma sociedade democrática é “madura”, quer dizer, que apresenta uma qualidade que é aliada a maturidade individual que caracteriza seus membros saudáveis.” (WINNICOTT, 1950, 2011- p. 250)[1]
Assim, a maturidade é, em Winnicott, a chave para poder vivenciar a democracia. Tenho constantemente orientado pais e professores que não é possível esperar a capacidade de exercício democrático entre crianças e adolescentes, pois de fato o processo de organização social pautado na democracia depende de maturidade emocional, que poderá ser vivenciada plenamente na vida adulta. Neste sentido, quando vejo pais e educadores conversando com crianças e adolescentes como se fossem adultos e capazes de seguirem regras estabelecidas no coletivo de forma livre e espontânea, logo concluo que há uma falta de clareza sobre a imaturidade natural destas idades. Lógico que da primeira infância até a adolescência adulta, que chega à casa dos 18 aos 22 anos, há uma evolução na maturidade sim, porém, para cada etapa deve-se observar o grau de maturidade. Podemos localizar que até os sete anos, aproximadamente, a criança se orienta de forma anômala, segue quase que como um espelho aos adultos; depois evolui para o estágio heterônomo, em que segue as regras como elas são colocadas; e chega na adolescência com a heterônomas, mais questionáveis, pois já começa a amadurecer um pouco mais, porém com a imaturidade inerente ao adolescente.
Professores que arriscam em definir regras no coletivo a partir das necessidades das crianças e adolescentes poderão cair em uma armadilha de perda total do controle de limites sobre os alunos. Lembro-me do filme Sociedade dos Poetas Mortos, de 1989, um drama adolescente dirigido por Peter Weir com o ator Robin Williams. No drama deste filme, o Professor de literatura, que é interpretado por Robin Williams, cria uma sociedade secreta para recitar poesias com seus alunos de uma escola de internato. O professor cai na armadilha de que estava lidando com jovens cheios do desejo de aprender e que respeitariam as regras discutidas no grupo de forma democrática. O resultado é catastrófico. Nestes dias me surpreendi com um menino de seis anos pagando a conta do restaurante com o cartão de crédito do pai, onde ele até digitava a senha. Aqui encontramos duas armadilhas: o pai acreditar que o filho já está pronto para manusear seu cartão de crédito e o restaurante aceitar uma criança fazer o pagamento passando o cartão do pai, sendo que o pai não estava presente. São muitas as cenas em que nos deparamos com esta falta de percepção dos adultos em identificar as naturais imaturidades de seus filhos.
Winnicott vai pensar o tema da democracia a partir do voto nas eleições, característico de regimes democráticos. “No exercício do voto secreto, toda a responsabilidade pela ação é assumida pelo indivíduo, se ele for suficientemente saudável para isso. O voto expressa o desfecho de uma luta dele consigo mesmo, tendo sido a cena externa internalizada e portanto trazida em forma de associações ao interjogo de forças existentes em seu próprio mundo pessoal, interno.” (WINNICOTT, 1950, 2011- p. 252)
Aqui, o voto representa necessidades internas que vão ser pronunciadas nas urnas conforme a identificação que cada indivíduo vai fazendo para tomar uma decisão que é dele. Por este motivo temos regras e fiscalizações para que haja liberdade no ato de votar, procurando-se eliminar campanhas publicitárias apelativas ao emocional, uso do poder econômico, etc. Por isso que Winnicott afirma que “Se democracia é maturidade, e maturidade é saúde, e se a saúde é desejável, então vamos procurar algo que possa promovê-la. Com certeza, não ajuda nada impor uma máquina democrática a um país.” (WINNICOTT, 1950, 2011- p. 257). Por isso mesmo que no Brasil o voto é obrigatório, pois há uma imposição para a democracia em um terreno imaturo, que de forma heterônoma os adultos precisam respeitar. A pergunta é: Está dando certo?
Maturidade está associada com saúde e, consequentemente, com democracias estáveis. Se ainda não vimos esta realidade acontecer e, atualmente, vivemos uma democracia em plena ameaça, com parte da população acreditando que um regime militar é a solução, concluímos que temos uma nação com muita força na imaturidade de seu povo. A imaturidade no adulto se revela na crença em promessas messiânicas e na necessidade de um salvador da pátria, ressalta a força nos políticos corruptos e se corrompe na venda de seu voto. Eu não tenho dúvidas da imaturidade coletiva da população brasileira, que numa construção histórica de falácias e mentiras, com força nos privilégios de uma elite dominante, faz sustentar um picadeiro da falsa democracia. E o resultado é o que estamos vendo: a democracia ameaçada.
Visitas: 895
Autor:
Psicanálise Contextualizada 02/06/2021 12:35:43 894
A Psicanálise em Winnicott de fato vai para além das demandas deestrutura psíquica do indivíduo e extrapola os limites da clínica psicológica.Desde o primeiro vídeo no meu canal do Youtube, até os textos que acompanhamcada vídeo no meu site (O pensamento de Winnicott), vamos observando a versatilidade eamplitude de extensão para diferentes áreas da sociedade. Aqui, temos apossibilidade de observa...
Psicanálise Contextualizada 01/06/2021 19:14:08
“Nas fantasias inconscientes como um todo, referentes ao crescimento durante a puberdade e a adolescência, existe a morte de alguém. Boa parte delas pode ser enfrentada através do jogo, de deslocamentos e a partir de identificações cruzadas.”(WINNICOTT, 1968,2011, p. 155)[i]
Neste site tenho diversos artigos sobre adolescência e no canal do Youtube vários vídeos sobre o mesmo tema. Neles aponto sobre o processo de morte na passagem do ser criança para o ser adolescente. A morte do corpo de criança, a morte dos pais de criança e a morte da identidade de criança são fatores que Winnicott nos apresenta como ‘morte de alguém’. Ela é elaborada na interação com o mundo a partir dos jogos, deslocamentos, isto é, para diferentes experiências que até podem causar prejuízos para a adolescência, como é o caso do encontro de grupos de riscos sociais e a própria delinquência. O adolescente também vai elaborando essas mortes pela identificação cruzada, a partir de vínculos amorosos e das identificações com os pais e educadores - por oposição, aproximação ou identificação.
Assim, a adolescência se apresenta com a marca da imaturidade, que é diferente da imaturidade na criança. Na adolescência a imaturidade é camuflada com a marca da autodefesa por ataques. Winnicott nos lembra que “A imaturidade é um elemento essencial da saúde durante a adolescência. Só existe uma cura para a imaturidade – a passagem do tempo e o crescimento para a maturidade que o tempo pode trazer. No fim, essas duas coisas resultam na emergência de uma pessoa adulta.” É uma etapa que deve ser respeitada, pois representa uma passagem, que pode alongar-se mais ou menos conforme o ambiente de proteção, variando entre os 12 e os 22 anos.
A adolescência é um tempo de construção de referências para se chegar à vida adulta. Nesta forma de ver, cabe aos pais e educadores não querer acelerar a maturidade dos adolescentes, mas sim, ter a capacidade de acolher esta imaturidade que tende a evoluir lentamente até a sua real maturidade. Quando não se respeita esta etapa, por parte dos adultos, haverá conflitos, tendências de patologizar os adolescentes e até haverá processos repressivos, que lá na frente prejudicarão o processo maturacional, por antecipação ou até adiando a maturidade.
Esta configuração da imaturidade do adolescente é o que já apontei aqui, em artigos anteriores, como a Psicopatologia da Adolescência Normal, que aos olhos dos adultos - que não querem ou não conseguem acompanhar esta etapa – tendem a caracterizar como portadores de uma doença mental. De fato, há casos que parecem um quadro de desintegração emocional, mas que devem ser bem avaliados para detectar se está dentro do espectro normal da imaturidade desta fase da vida.
Quando, de fato, os adolescentes chegam ao máximo do desafio e da contravenção é melhor avaliar se sua estrutura segue um caminho normal de maturidade ou se é já sinal de um transtorno.
O melhor caminho é estar junto, participar e de alguma forma dar liberdade, com a referência daquele velho ‘conselho popular’: Não desamarre o adolescente da corda, mas pode dar muita corda para ele ter a liberdade de construir seus referenciais conforme cada etapa de sua adolescência vai lhe pedir. Aqui vale a liberdade assistida, com o tal do “mas, porém, todavia...”
Visitas: 952
Autor:
Psicanálise Contextualizada 01/06/2021 19:14:08 951
As perdas “Nas fantasias inconscientes como um todo, referentes ao crescimentodurante a puberdade e a adolescência, existe a morte de alguém. Boa parte delaspode ser enfrentada através do jogo, de deslocamentos e a partir deidentificações cruzadas.”(WINNICOTT, 1968,2011, p. 155)[i] Neste site tenho diversos artigos sobre adolescência e no canal do Youtubevários vídeos sobre o mesmo tema. N...
Psicanálise Contextualizada 25/05/2021 13:42:44
Este tema, abstrai a partir de um livro, publicado pela Editora Martins Fontes, que é uma coletânea de artigos com o título “Tudo começa em casa”[i].
Para mim, o conceito de criatividade é de fundamental importância na estrutura emocional de um indivíduo, e que não pode ser confundido com o “ser um artista criativo”. A arte de viver, principalmente em uma sociedade cheia de conflitos, é uma condição para poucos. Por este motivo que a maioria adoece e a vida perde significado e sentido.
Winnicott nos apresenta sua forma de pensar a criatividade: “Para ser criativa, uma pessoa tem que existir e ter um sentimento de existência, não numa forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da qual operar. Em consequência, a criatividade é o fazer que, gerado a partir do ser, indica que aquele que é está vivo. Pode ser que o impulso esteja em repouso; mas, quando a palavra “fazer” pode ser usada com propriedade, já existe criatividade (...). Retire os estímulos e o indivíduo não tem vida”. (WINNICOTT – 1970, 2011 – p. 23).
A relação entre vida e existir prescinde a constrição da pessoa que pode ser criativa. Mas este processo é uma construção ao longo do desenvolvimento emocional do sujeito, que requer também estímulos. “A criatividade é, portanto, a manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo. Para o bebê, isso não é difícil; se a mãe for capaz de se adaptar às necessidades do bebê...” (WINNICOTT, 1970, 2011 – p. 24). Aqui novamente há o retorno para a experiência satisfatória da criança na relação com a mãe ou com quem desempenha o papel de mãe.
Nesta questão da criatividade, temos a tendência de associar com a produção artística e, com isto, a capacidade de ter habilidades produtivas. Mas Winnicott traz uma distinção clara entre o Viver Criativo e a Criação Artística. “No viver criativo, tudo aquilo que fazemos fortalece o sentimento de que estamos vivos, de que somos nós mesmos. Uma pessoa pode olhar para uma árvore (não precisa ser necessariamente um quadro) e fazê-lo criativamente.” (WINNICOTT, 1970, 2011 – p. 28).
Conseguir chegar ao estágio de se interagir com o mundo de forma produtiva e também com liberdade fantasiosa, dando a ele significados e brilhos, caracteriza o Viver Criativo. Já a produção artística requer algum talento específico e que não representa que o artista, ao criar uma arte, seja uma pessoa que viva criativamente. Pode ser apenas uma profissão. Para Winnicott “O sintoma de uma vida não criativa é o sentimento de que nada tem significado, o sentimento de futilidade, de que nada importa.” (WINNICOTT, 1970, 2011 – p. 36).
Pais e educadores se enganam com a ideia de que ao direcionarem a criatividade das crianças as estimulam para que sejam criativas. Pelo contrário, é a ambiência de seguridade e de pertença positiva ao mundo em que a criança está inserida que vai garantir o viver criativo e a capacidade criativa. Pois esta construção tem que passar pelas necessidades pessoais da criança e sua interatividade pessoal com seu mundo. Dá-se de forma espontânea, que, se estimulada, poderá vingar a partir dela mesma. Do contrário, quando passa a ser uma imposição dos pais e educadores que tendem a moldar a criatividade da criança, observa-se um abafar da criatividade. Winnicott nos aponta que “Algumas crianças são obrigadas a crescer numa atmosfera intensamente criativa, mas que pertence aos pais...” (WINNICOTT, 1970, 2011- p. 38). Quando os pais e educadores direcionam, a partir do referencial pessoal deles, estão sufocando a criatividade da criança.
Já abordamos aqui em texto e vídeo no meu canal do YouTube ( O PENSAMENTO DE WINNICOT | A capacidade de estar só Ep. 04 ) que o brincar é a essência da construção do pensamento da criança na elaboração do mundo ao seu redor. Neste sentido, Winnicott nos lembra que “A criatividade é inerente ao brincar, e talvez não seja encontrada em nenhuma outra parte.” (WINNICOTT, 1968, 2011 – p 51).
Ambientes familiares e educacionais não precisam estar recheados de estímulos visuais ou de produções direcionadas de jogos, artes, etc. É preciso, sim, que os ambientes sejam acolhedores e estimulantes para provocar o livre brincar da criança, e ao mesmo tempo, estar junto, brincar junto, respeitando o ritmo de cada criança e deixando-a livre para expressar seus sentimentos, impulsos e fantasias.
Visitas: 959
Autor:
Psicanálise Contextualizada 25/05/2021 13:42:44 958
Este tema, abstrai apartir de um livro, publicado pela Editora Martins Fontes, que é uma coletâneade artigos com o título “Tudo começa em casa”[i]. O conceito de criatividade Para mim, o conceito de criatividadeé de fundamental importância na estrutura emocional de um indivíduo, e que nãopode ser confundido com o “ser um artista criativo”. A arte de viver,principalmente em uma sociedade ch...
Psicanálise Contextualizada 20/05/2021 15:10:41
Seguimos, neste artigo, dando continuidade a série O pensamento de Winnicott para pais e educadores, que estou desenvolvendo com vários textos e vídeos sobre o assunto, confira:
Sempre recebo perguntas de pais sobre como conduzir um filho, desde a infância a seguir a religião dos pais e desenvolver o relacionamento com Deus. Normalmente respondo que a escolha religiosa é uma condução pessoal e depende muito de fatores internos do indivíduo, construídos ao longo de sua história até chegar a vida adulta. Sabemos que, muitos seguem a religião ou acreditam em Deus por uma mera tradição e poucos escolheram praticar a religião que dizem professar.
Processos de conversão religiosa e crença em Deus ou alguma entidade sagrada, é pessoal e relacionado na sua quase totalidade por necessidades afetivas.
No pensamento do Psicanalista Winnicott, encontrei um respaldo para minha maneira de ver esta necessidade, retirado de um artigo de 1963 copilado no livro “O ambiente e os processos de maturação”[1]. Winnicott, diz: “A boa alternativa tem que ver com o proporcionar ao lactente e às crianças aquelas condições que possibilitem a coisas como confiança e “crença em”, e idéias de certo e errado, se desenvolverem da elaboração dos processos internos da criança. Isto poderia ser chamado de evolução de um superego pessoal”. (WINNICOTT, 1963; 1983, p. 89).
O conceito de superego que foi elaborado por Freud, diz respeito à estrutura de regras e valores que ao longo do desenvolvimento emocional da criança vai equilibrando as forças do impulso (ID) para a estruturação do ser (EGO). É como se fosse, a grosso modo, uma energia psíquica de controle. Este mecanismo se dá no estabelecimento de vínculo da criança/mãe e posteriormente aos que os cercam, chegando depois ao ambiente escolar. Nem tudo o que desejo posso realizar, por forças internas que reprimem meu desejo, de forma consciente e na maioria inconscientemente.
Neste sentido, Moral e Educação para o sentido de Deus na vida humana, passa pelo processo de vínculo afetivo e desenvolvimento interno, tendo em vista que Deus na nossa cultura ocidental está muito vinculado à uma prática religiosa e consequentemente a normas de conduta. Winnicott assim acrescenta: “A religião (ou a teologia?) escamoteou o bom da criança em desenvolvimento e estabeleceu um esquema artificial para injetar de volta o que lhe tinha sido tirado, e denominou-o “educação moral”. Na verdade, a educação moral não funciona a menos que o lactente ou a criança tenham desenvolvido dentro de si mesmos, por um processo natural de desenvolvimento, a essência que, quando colocada no céu, recebe o nome de Deus. O educador moral depende para seu êxito de existir na criança aquele desenvolvimento que possibilite aceitar Deus do educador moral como uma projeção da bondade que é parte da criança e sua experiência real da vida.” (WINNICOTT, 1963; 1983,p. 89).
Não poderá ter acesso a um sentimento de Deus na perspectiva de algo bom e bondoso, se em sua história de vínculo pessoal não houver registros substanciais de um ambiente educacional também de bondade, ou de um ambiente suficientemente bom.
Crianças que tiveram rompimentos de laços afetivos e ou experiências negativas de vínculo amoroso com seus educadores, não conseguirão vivenciar a experiência com Deus?
Dentro de uma perspectiva de substituição do elo perdido favorável, que se dá no processo de amadurecimento, posso dizer que é uma missão quase impossível, mas nada impede que este vínculo aconteça. Contudo, é provável que, se acontecer, seja estabelecido num tipo de vínculo com o Sagrado Deus pela prática doutrinária, repressora e sem afeto. Tipo religiões que se apegam em disputas de poder e estimulam o ódio; ou também, aquele indivíduo sem a experiência favorável de vínculo afetivo, que se encontra em um contínuo processo de carência afetiva na vida adulta, poderá se identificar com um Deus que seja o apego paterno e materno que lhe faltou ou falhou na sua história, e assim o apego às práticas religiosas messiânicas, de promessas de salvação e de um Deus que supre todas as necessidades humanas.
Winnicott nos lembra: “Os pais não têm de fazer seu bebê como o artista tem de fazer seu quadro ou o trabalhador de cerâmica seu pote. O bebê cresce a seu modo, se o ambiente é suficientemente bom.” (WINNICOTT, 1963; 1983, p. 91).
Aqui fala de um de seus ícones de estrutura para o desenvolvimento emocional de uma criança, que é o ambiente suficientemente bom. Neste ambiente, pode ser mais fácil estabelecer a relação de um Deus bom, que de fato possa representar a sequência e projeção deste ambiente para a vida adulta. “À criança que não tem experiências suficientemente boas nos estágios iniciais não se pode sugerir a idéia de um Deus pessoal como substituto de cuidado do lactente.” (WINNICOTT, 1963; 1983 p. 92).
Quando o processo de educação moral religiosa é introduzido de forma doutrinária e de maneira impositiva, pode até dar resultado, mas para situações de indivíduos antissociais, como geralmente acontece em centros de recuperação de dependentes químicos cujas mantenedoras são de instituições ligadas a alguma religião. Como já dizia Haroldo Hans, um Padre Jesuíta dos Estados Unidos que foi o precursor do modelo de comunidades terapêuticas de recuperação de dependentes químicos no Brasil, ao questionar as instituições que se utilizavam da ‘lavagem cerebral religiosa’ para conduzir o dependente à abstinência onde troca-se a droga por uma outra droga, que é a Bíblia, pois segundo ele, a Bíblia imposta de forma autoritária, não condiz com a verdade de um Deus de amor. Pude trabalhar com Haroldo Hans por quase três anos na Comunidade Vila Brandina na cidade de Campinas-SP, em processo de estágio durante meus três primeiros anos cursando Psicologia na UNESP de Assis-SP.
E é sobre isto que Winnicott vai nos alertar: “Medidas drásticas ou repressivas, ou mesmo doutrinação, podem se adaptar às necessidades da sociedade para o manejo do indivíduo anti-social, mas essas medidas são a pior coisa possível para pessoas normais, para aqueles que podem amadurecer a partir de dentro de si mesmos, desde que recebam um ambiente favorável, especialmente nos estágios iniciais do crescimento.” ( WINNICOTT, 1963; 1983,p. 98).
E quando a criança entra no sistema escolar, não será muito favorável aos professores tentarem introduzir uma moral religiosa, pois não fará eco nas necessidades internas do indivíduo, pois esta memória afetiva ou sem afetuosa, já se deu nos primeiros anos de vida. Assim, o doutrinar num ambiente que é para levar ao conhecimento do mundo, fica desconexo e corre-se o risco de cada professor transmitir sua própria experiência e ou condução doutrinal.
Por este motivo que particularmente não sou a favor do ensino religioso na escola na forma doutrinal, mas sim no processo de conhecimento das religiões pelo mundo. Lembro-me de um pensamento do Padre Domênico Salvador, Doutor em Filosofia pela Universidade de Milão Itália, que se você quiser educar um filho para o catolicismo, não o coloque em uma escola confessional católica, pois ele poderá se decepcionar com as incoerências que irá encontrar lá dentro.
O melhor caminho para que uma criança consiga se encontrar com a crença de um Deus de Amor, é provocar desde o início de sua existência, um ambiente em que o amor é praticado de forma espontânea. E se há pretensões de líderes religiosos em converter fiéis para as suas religiões, com foco em pessoas adultas, o melhor caminho também será pelo encontro sem falsas intenções, onde este Deus será identificado não por doutrinações, mas por encontros afetivos de solidariedade.
[1] WINNICOTT,W,D - O Ambiente e os Processos de Maturação - Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre, Editora Artmed, 1983
Visitas: 869
Autor:
Psicanálise Contextualizada 20/05/2021 15:10:41 868
Seguimos, neste artigo, dandocontinuidade a série O pensamento deWinnicott para pais e educadores, que estou desenvolvendo com vários textose vídeos sobre o assunto, confira: O pensamento de Winnicott para pais e professores - Sobre Winnicott O pensamento de Winnicott para pais e professores | O Brinquedo e o Brincar O pensamento de Winnicott para pais e professores | Maternidade Sufi...
Psicanálise Contextualizada 13/05/2021 09:38:56
A culpa carrega a existência do ser humano na vida adulta. É um elemento vital na configuração dos transtornos emocionais. Relaciono a culpa ao chicote que a pessoa carrega para com frequência se auto agredir diante de ações que julga ter feito errado, em que passa a se condenar, instaurando a doença emocional.
Por este motivo que trago aqui algumas citações de textos elaborados por Winnicott que nos ajuda a entendermos os mecanismos de instauração da culpa. A referência desses textos selecionados abstraí do livro editado pela editora Artmed, “O Ambiente e os Processos de Maturação – Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional"[1], um copilado de textos selecionados com a temática dos estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional.
Este texto é a base para a reflexão que desenvolvi no vídeo com o mesmo tema no meu canal do Youtube Abarca Psicólogo (Veja: O PENSAMENTO DE WINNICOT | Sentimento de culpa Ep. 03).
Segundo Winnicott: “Em termos de ego-id o sentimento de culpa é pouco mais do que ansiedade com uma qualidade especial, ansiedade sentida por causa do conflito entre amor e ódio. O sentimento de culpa implica a tolerância da ambivalência.” (WINNICOTT, 1958, 1983, p. 20).
A ambivalência instaurada no processo de estruturação do ego por conta das necessidades de impulso fisiológico e emocional (id), que se estabelece logo no primeiro ano de vida no vínculo da criança com a mãe pela necessidade nutricional de aleitamento e que também é afetiva. Uma relação que mobiliza ansiedade, tanto da criança por ser suprida, como da mãe para suprir a criança.
A ansiedade vai se transformar em culpa, conforme aponta Winnicott: “Um sentimento de culpa, portanto, implica que o ego está se conciliando com o superego. A ansiedade amadureceu rumo à culpa.” (WINNICOTT, 1958,1983 – p. 22).
A culpa é assim um processo de amadurecimento, que remete à percepção da criança pelo mecanismo de controle de suas impulsividades e desejos pelo superego, conceito atribuído por Freud para explicar a construção interna no sujeito sobre regras/moral. Fator que é também desenvolvido pela mãe quando coloca regras para o mamar, horários e todo processo de higienização no trato com a criança.
Este mecanismo é perceptível na análise tanto de crianças como de adultos, onde Winnicott nos coloca: “Em uma análise bem sucedida de indivíduos que são oprimidos por um sentimento de culpa, vemos uma diminuição gradativa desta carga. Essa diminuição da carga do sentimento de culpa se segue à diminuição da repressão...” (WINNICOTT, 1958,1983 – p.23).
E de fato, muitos pacientes temem dar continuidade ao processo de análise por se assustarem com a diminuição do sentimento de culpa. Geralmente ouvimos assim: “Nossa! As pessoas estão falando que estou mais livre e se importando menos com a opinião deles e que estou ficando mais egoísta e só pensando em mim.” Também na análise de criança observamos este fenômeno, mas desenvolvido pelos pais, principalmente a mãe que chega até a interromper o processo com argumentos do tipo: “A terapia está deixando minha filha mais respondona e eu não quero correr o risco de ter uma filha assim, onde eu perco o controle.” Por isso que o processo de análise necessita ter critérios para que a dissolvição do sentimento de culpa se dê paulatinamente. Com as crianças, é importante o analista estar sempre em processo de diálogo com os pais e alertando as possíveis alterações de comportamento do filho.
Mas a culpa tem sua origem e Winnicott, que teve como base de formação para se introduzir como analista de criança após longa carreira como pediatra, a psicanalista Melanie Klein que foi a protagonista na sistematização da Psicanálise da criança, cita: “Deve-se notar que enquanto os trabalhos mais precoces da psicanálise lidaram com o conflito entre o ódio e o amor, especialmente em situações triangulares ou a três pessoa, Melanie Klein mais especialmente desenvolveu a idéia do conflito em um relacionamento simples a duas pessoas, do lactente com a mãe, conflito originado das idéias destrutivas que acompanham o impulso amoroso.” (WINNICOTT, 1958; 1983, p.25)
Melanie Klein vai elaborar o conceito na primeira etapa do vínculo da mãe com a criança da posição esquizo paranoide e posição depressiva, onde a criança estabelece na ambivalência primeira de ser nutrida pela mãe, também destruir o objeto que a nutre na relação mamar/morder, mamar/aproximar/separar e depois na condição de romper aos poucos com a relação exclusiva com o mãe para os próximos desenvolvimentos de novas etapas. Pela ambivalência de sentimento que emerge o sentimento de culpa.
A culpa pode dar vazão para evoluir às doenças emocionais como nos aponta Winnicott: “É fácil, contudo, pensar em termos de doença, e as duas doenças que devem ser consideradas são a melancolia e a neurose obsessiva. Há uma inter-relação entre essas duas doenças, e encontramos pacientes que alternam entre uma e outra.” (WINNICOTT, 1958; 1983 p. 23).
O sentimento de culpa será observável também no contexto escolar, quando a criança se culpa por não entender um conteúdo e bloqueia seu estímulo ao aprendizado. Numa relação de ambivalência a criança também revive a mesma relação que estabeleceu com a mãe para o professor principalmente na pré-escola, quando a criança se introduz na alfabetização sistematizada. O professor que é a acolhida para o mundo do conhecimento sistematizado, também pode ser aquele no qual a criança vai odiar por que exige dela algo no qual ela possa entender como inatingível. Nesta relação ambivalente entre aluno/professor pode ser revitalizado o sentimento de culpa.
Assim, tanto para a ambiência familiar, como para a escolar, os pais e professores, sabendo deste mecanismo de ambivalência amor/ódio, devem introduzir as regras dentro de um processo afetivo, interacionista em que a criança vai se estruturando por consciência, elaborando frustrações, pois a ambiência é favorável para a acolhida natural desta ambivalência ao invés das regras serem colocadas de forma repressiva. É aqui que se instaura grande confusão entre colocar limites com afeto ou colocar limites com chicote.
[1] WINNICOTT,W,D - O Ambiente e os Processos de Maturação - Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre, Editora Artmed, 1983
Visitas: 963
Autor:
Psicanálise Contextualizada 13/05/2021 09:38:56 962
A culpa carrega a existênciado ser humano na vida adulta. É um elemento vital na configuração dostranstornos emocionais. Relaciono a culpa ao chicote que a pessoa carrega paracom frequência se auto agredir diante de ações que julga ter feito errado, emque passa a se condenar, instaurando a doença emocional. Por este motivo que trago aqui algumas citações de textoselaborados por Winnicott que no...
Psicanálise Contextualizada 11/05/2021 19:49:01
Este é o segundo texto da série em que estamos falando sobre O pensamento de Winnicott para pais e professores, nele vamos abordar um forte conceito estruturante na obra de Winnicott que é “Maternidade Suficientemente Boa”.
No texto anterior desenvolvemos o tema do Brinquedo e do Brincar, confira:
Para o texto de hoje trago o livro “O Ambiente e os Processos de Maturação – Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional”[1], publicado pela editora Artmed, e que agrupa uma série de artigos escritos por Winnicott. Dele, vou abstrair uma sequência de citações, em que o autor embasa o conceito da Maternidade Suficientemente Boa.
“O início do surgimento do ego inclui inicialmente uma quase absoluta dependência do ego auxiliar da figura materna e da redução gradativa e cuidadosa da mesma visando à adaptação. Isto faz parte do que eu denomino “maternidade suficientemente boa”; neste sentido o ambiente figura entre outros aspectos essenciais da dependência, no meio do qual o lactente está se desenvolvendo, utilizando mecanismos mentais primitivos”. ( WINNICOTT,1983, p. 15).
Aqui, onde ainda a criança e mãe se fundem em um só ser, etapa estruturante da Maternidade Suficientemente Boa e que tem como período prioritário do desenvolvimento os seis primeiros meses de vida de uma criança. Winnicott vai associar esta etapa com o equivalente ao conceito de amor:
“Poderia se usar a palavra ‘amor’ aqui, correndo o risco de soar sentimental. Isto leva a observação final: muitas vezes, sem deixar a área abrangida pelo amor, verificaremos que uma criança necessita da firmeza na orientação, precisando ser tratada como a criança que é não como um adulto”. (WINNICOTT, 1983, p. 69).
É uma percepção que geralmente observamos quando dos processos de orientação às mães no período de amamentação, que tendem a achar que a criança já possui um esquema autônomo, quando esperam que ela reaja de tal forma que lhes dê menos trabalho. Numa nítida tendência de querer eliminar os trabalhos que um lactente absorve dos adultos que estão ao seu redor. O conceito de amor é atribuído para representar um forte sentimento de fácil entendimento da mãe ao cuidar de seu bebê. Um apelativo que frequentemente é preciso ser utilizado para restabelecer a mãe nos tratos culturais para o cuidado deste novo rebento frágil e cheio de limites que é um bebê.
Porém, Winnicott, sabe que a Maternidade Suficientemente Boa não diz respeito apenas à pessoa da mãe, que não vai conseguir por si só dar conta de cuidar da criança. Não há aqui neste conceito um fator que sobrecarregue a mãe, dando a ideia de uma relação machista onde tudo sobra para a mãe. Winnicott trás a figura do pai na construção do Ambiente Suficientemente Bom quando diz:
“Cuidado paterno satisfatório pode ser classificado mais ou menos em três estágios superpostos: a) Holding. b) Mãe e lactente vivendo juntos. Aqui a função do pai (ao lidar com o ambiente para a mãe) não é conhecida da criança. c) Pai, mãe e lactente, todos vivem juntos. (...) o termo holding é utilizado aqui para significar não apenas o segurar físico de um lactente, mas também a provisão ambiental total anterior ao conceito de viver com.” (WINNICOTT, 1960; 1983 p. 44)
Podemos observar aqui que o pai tem uma forte função na configuração desta ambiência suficientemente boa quando supre a mãe/esposa de reabastecer as energias dela para suprir a necessidade do bebê. Sempre atribuo à pessoa do pai a função de ser um “recarregador” das energias da mãe, mesmo que a criança não saiba ou não perceba. Aqui é sempre bom lembrar que é o pai ou quem está próximo da mãe que faz este papel de cuidar da ambiência. Assim, não se pode ver esta etapa estruturante do desenvolvimento emocional de um indivíduo só a partir da pessoa da mãe.
Rumo à independência da criança, seguindo às novas etapas do desenvolvimento infantil, cabe a escola uma forte atribuição, e aos educadores um papel singular na extensão dos vínculos de afetos que sai da relação da mãe e ambiente familiar e vai para o equipamento escolar já na pré-escola. Winnicott vai nos lembrar:
“ ‘Rumo à independência’ descreve o esforço da criança pré-escolar e da criança na puberdade. No período de latência as crianças habitualmente estão satisfeitas com o que quer que tenham de dependência que são capazes de experimentar. A latência é o período do brinquedo escolar no papel de substituto para a casa”. (WINNICOTT, 1963; 1983, p. 87).
Temos esta projeção para que a criança atinja sua independência que terá como marco referencial já a idade pré-escolar que poderá contribuir para que esta nova etapa de separação do núcleo familiar se dê de forma saudável, por isso requer uma acolhida dos educadores com um forte toque de vínculo afetivo e também numa ambiência educacional em que o aprender seja introduzido de forma mais lúdica possível. Não da para se estabelecer um conceito de escola para esta etapa de vida da criança que não seja focada no afeto e na dinâmica do brincar. Por isso que atribuímos o conceito “comunidade escolar” do que escola simplesmente. Pois a comunidade escolar inclui a família, criança, equipe técnica e profissionais presentes no ambiente escolar. Escola deve ser sim uma extensão da família.
Se a Maternidade Suficientemente Boa for de fato vivenciada na vida de uma criança, ela poderá se constituir com mais facilidade para a plena autonomia e maturidade na vida adulta, como nos aponta Winnicott:
“Deve-se esperar que os adultos continuem o processo de crescer e amadurecer. (...) Mas uma vez que eles tenham encontrado um lugar na sociedade através do trabalho e tenham talvez se casado ou se estabelecido em algum padrão que seja uma conciliação entre imitar os pais e desafiadoramente estabelecer uma identidade pessoal, uma vez que esses desenvolvimentos tenham lugar pode-se dizer que se iniciou a vida adulta.” (WINNICOTT, 1963; 1983,p. 87).
Ao trilharmos brevemente algumas citações do pensamento de Winnicott neste tema específico da Maternidade Suficientemente Boa, podemos concluir que dela é condição balizar para um indivíduo construir sua identidade e singularidade depois, na vida adulta.
[1]WINNICOTT, Donald Woods. O Ambiente e os Processos de Maturação - Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Editora Artmed, 1983
Visitas: 887
Autor:
Psicanálise Contextualizada 11/05/2021 19:49:01 886
Este é o segundo textoda série em que estamos falando sobre Opensamento de Winnicott para pais e professores, nele vamos abordar umforte conceito estruturante na obra de Winnicott que é “MaternidadeSuficientemente Boa”. No texto anterior desenvolvemoso tema do Brinquedo e do Brincar, confira:Artigo: O pensamento de Winnicott para pais e professores | O Brinquedo e o BrincarVídeo: O PENSAM...
Psicanálise Contextualizada 06/05/2021 17:24:15
Hoje tenho visto pais e educadores dando cabeçada sobre o processo educacional das crianças. Com a emergência da Tecnologia de Informação e da pandemia COVID19, onde predominou a necessidade de ocupar o tempo em casa e ministrar aulas on-line para as crianças impossibilitadas de estarem na sala de aula, os digitais triunfam, tanto nas famílias e suas residências como na escola, o brinquedo e o brincar ficaram esquecidos. Por um lado, os pais divididos entre o trabalho de casa e a possível eminência da perda de emprego, por outro, os professores distantes de suas crianças com conteúdos e mais conteúdos teóricos sem a vivência prática do conhecimento.
Assim, o livro “O Brincar e a Realidade”[1], escrito por Winnicott em 1971, é um marco referencial na obra deste Psicanalista, e que até hoje nos serve de referência:
“Introduzi os termos ‘objetos transicionais’ e ‘fenômenos transicionais’ para designar a área intermediária de experiência entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já é introjetado, entre o desconhecimento primário de dívida e o reconhecimento desta” (WINNICOTT, 1975, p. 14)
Aqui Winnicott introduz de forma mais sistematizada a relação do bebê com a mãe na primeira etapa de amamentação, onde a criança estabelece uma relação de ilusão pelo ato de mamar, de ser suprido (fato real), porém de ter a satisfação emocional sobre o ato. Neste elemento, a ilusão, é que se estabelece o objeto transicional, que no primeiro momento é o bico do seio, o primeiro brinquedo da criança, que liga o bebê à sua mãe e passa a ser o ato de mamar a primeira brincadeira da criança:
“Psicologicamente, o bebê recebe de um seio que faz parte dele e a mãe dá leite a um bebê que é parte dela mesma”. (WINNICOTT, 1975, p. 27)
Tudo começa exatamente a partir deste vínculo, do encontro do bebê com os seios de sua mãe. Aqui é bom ressaltar que no lugar de mãe podemos pensar aquela que cuida. No lugar de seios podemos pensar também a mamadeira. E que no lugar da mãe isolada na relação do bebê podemos pensar o ambiente de cuidadores. Assim, o pai ou as figuras masculinas ao redor da mãe que se fazem de pais, são peças fundamentais para que este inter-jogo da ilusão com o objeto transicional possa acontecer.
Neste sentido, todo o núcleo familiar esta envolto nesta demanda. Por isso mesmo que o novo rebento que surge no seio de uma família traz grande mobilização/desmobilização ao núcleo familiar. Por daqui emana o futuro da criança para descobrir o mundo, que vai sair do processo restritivo de mamar para o processo de se encontrar com o mundo de forma criativa, desejado e vital. Do contrário, se faltar condições de ambiente que recebe, acolhe, nutre fisicamente a afetivamente, esta ilusão da criança e da mãe nesta relação se torna traumática, e começa ai os bloqueios para novas elaborações cognitivas.
Pensando nesta etapa estruturante de vínculo para os educadores de equipamentos de creches, se aprenderem e entender a força que representa esta interatividade do bebê com a mãe, estes profissionais precisarão estar envolvidos para além dos conhecimentos pedagógicos, mas sim deverão estar de alguma forma sendo a extensão dos braços que acolhem as crianças no núcleo familiar. Neste sentido, o pensamento de Winnicott joga um olhar para além da técnica pela técnica.
Pensando no ambiente familiar e também educacional a partir do brinquedo e do brincar como elemento transitório, pode-se impulsionar a criança a evoluir do vinculo materno filial para a descoberta do mundo, para novos relacionamentos e para o desejo do conhecimento. Podemos afirmar que para estes dois contextos educacionais os ambientes precisam ser movidos pelo brinquedo e pelo brincar. A insistência do brinquedo na conjugação do brincar é exatamente pelo motivo de vermos o esvaziamento deste grande elemento de relacionamento com o mundo que a criança tem em seus ambientes tanto familiares como escolares.
Os exemplos provém daquelas famílias em que você tem crianças pequenas e não encontra a boa bagunça dos brinquedos e se quer as crianças brincando, mas hipnotizadas em equipamentos eletrônicos, e nas escolas em que o foco é conteúdo e sem a experimentação do conteúdo com a prática. Pior ainda, quando vemos escolas/creches em que grande parte do tempo as crianças estão na frente de uma televisão assistindo algum desenho animado.
Veja que na cena primária do aleitamento e na evolução da criança para outras etapas evolutivas do desenvolvimento humano, o bico do seio que foi o primeiro brinquedo como objeto transicional evoluirá para outros objetos como a chupeta, a fraldinha, o ursinho ou outros objetos que a criança possa se entreter. Fazendo com que este movimento do brincar tenha grande influencia para todos os processos evolutivos cognitivos no mundo da criança e adolescente, e depois na vida adulta configurará no potencial criativo, como enfatiza Winnicott:
“...é a brincadeira que é universal e é a própria saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais...” (WINNICOTT, 1975, p. 63);
“É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua potencialidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre seu eu (self)” (WINNICOTT, 1075, p. 80).
Hoje temos várias pesquisas mostrando que o potencial cognitivo e de aprendizado da geração dos 50 anos está superior ao potencial da geração dos 20 anos, devido ao elemento Tecnologia da Informação, em que está sendo decretada a morte do brinquedo e do brincar. Com certeza a geração dos 50 anos pôde ter acesso livre aos brinquedos e brincadeiras dentro da perspectiva de estimulo à imaginação, pois o brincar requer em si a capacidade de inventar, fantasiar. e hoje o brinquedo eletrônico já vem com os direcionamentos de ação definidas, dificultando o desenvolvimento fantasioso da criança.
Para concluirmos este primeiro tema, podemos afirmar que pais e educadores que se preocupam com o futuro das crianças para que tenham potenciais cognitivos e criativos, investirão em processos educacionais que priorize o vínculo afetivo e o brincar. Pais que gastem tempo brincando livremente com seus filhos e escolas que gastem tempo com a experiências de conteúdos.
Observem quais são as cenas de sua história no seu núcleo familiar e na escola enquanto criança, que você lembra com alegria e satisfação até hoje? As que mais me marcaram foram as de atividades livres e descontraídas na família e na escola quando tínhamos que fazer coisas inovadoras e ou sair em atividades externas à sala de aula.
Também podemos lembrar-nos das pessoas que depois de muitos anos não saem de nossa memória, observe que geralmente são aquelas que se interagiram conosco de forma afetiva e efetiva. Quem pela nossa vida passou apenas por obrigatoriedade funcional, não está registrada em nossa alma, nossa psique.
Assim, Brinquedo e Brincar continuam sendo os elementos mais estruturantes na construção de pessoas livres e saudáveis emocionalmente. Este legado, a Tecnologia de Informação não vai conseguir substituir. Se nós nos deixarmos ser influenciados e dominados pelos digitais, aí sim estaremos entregues a baixa potencialidade cognitiva e a perda absoluta do maior legado de nossa espécie, que é o potencial criativo.
Visitas: 876
Autor:
Psicanálise Contextualizada 06/05/2021 17:24:15 875
Hoje tenho visto pais e educadores dandocabeçada sobre o processo educacional das crianças. Com a emergência daTecnologia de Informação e da pandemia COVID19, onde predominou anecessidade de ocupar o tempo em casa e ministrar aulas on-line para as criançasimpossibilitadas de estarem na sala de aula, os digitais triunfam, tanto nasfamílias e suas residências como na escola, o brinquedo e o brincar...
Psicanálise Contextualizada 04/05/2021 21:39:50
Nascido em abril de 1896, na Inglaterra, e falecido em janeiro de 1971, também na Inglaterra, Winnicott foi Pediatra e depois trilhou a formação de Psicanalista sob orientação de Melanie Klein, grande nome da Psicanálise inglesa que construiu os principais referenciais teóricos da Psicanálise infantil, sendo considerada a pioneira no atendimento de crianças dentro deste referencial. Assim, sob a influência de Melanie Klein, Winnicott, com sua formação Médica Pediátrica, acabou construindo seu próprio referencial teórico para o atendimento de crianças e adolescentes. Tornou-se líder da sociedade Britânica de Psicanálise Independente, e por duas vezes foi Presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise (1956-1959 e 1965-1968).
Winnicott foi qualificado como analista pela Sociedade Britânica de Psicanálise, em 1934, e depois como analista de criança em 1935. Durante a Segunda Guerra Mundial, atuou como consultor em pediatria no programa de evacuação de crianças, fato que colaborou decisivamente na elaboração teórica de Winnicott, por lidar diretamente com perdas de vínculos afetivos em crianças que se tornaram órfãos devido a Guerra. Neste período, ele acabou participando de um programa de rádio da BBC que, no inicio de 1943, tinha o título de “Happy Children”, e durou até 1966. Com isto, Winnicott acabou desenvolvendo sua construção teórica de forma direta e de fácil entendimento, o que lhe valeu também perseguição e ataque de membros da Sociedade Psicanalítica internacional, que o consideravam superficial e de intervenção cognitiva (induzidas). Porém, estes ataques vinham de grupos “nobres” da Psicanálise internacional da época, principalmente da escola francesa, que, a partir dos escritos de Lacan, o “quase indecifrável” por ter uma escrita rebuscada de códigos e muito intelectualizada. Neste sentido, os escritos de Winnicott eram quase considerados “rasos”. Como já dizia meu ex-supervisor clínico, Maurício Knobel, Psiquiatra Psicanalista e Professor Emérito da UNICAMP, “Muitos Psicanalistas escrevem e falam difícil para encobrir a própria ignorância” (fala em supervisão). Knobel também vem desta estirpe da teoria do vínculo a partir de Melanie Klein, a qual influenciou a escola Argentina de Psicanálise a partir de Arminda Aberastury, também Psicanalista Argentina que foi orientanda de Klein. Na Argentina, a psicanálise trilhou também uma via social e de interatividade sócio/político/cultural, o que valeu para a maioria dos principais membros da Sociedade de Psicanálise de lá o exílio para várias regiões do planeta, devido ao golpe militar em 1976. Por este histórico que acabei entrando nesta vertente da Psicanálise.
Chego a Winnicott por uma identificação muito forte com o perfil e histórico prático deste pensador, e também por não me considerar, na época da Universidade, já nas etapas finais de formação entre 1988 e 1990, capaz de manusear conceitos psicanalíticos complexos que me davam a sensação de ler tratados de física e matemática. Dizia que não escolhi ser psicólogo para manusear pensamentos exatos. Neste pensamento direto, prático e profundo de Winnicott, eu via a grande possibilidade de desenvolver processos de profilaxia e saúde emocional dentro de intervenções públicas e populares, como também no meio educacional.
Neste sentido que, nesta série que proponho escrever de textos e simultaneamente de vídeos para o meu canal do Youtube ( Abarca Psicologo ) , trago alguns pontos sucintos da teoria de Winnicott para pais e educadores, que constantemente estão em contínuo dilema sobre o processo educacional e os vínculos afetivos que esta interatividade requer com as crianças e adolescentes.
Espero que você possa seguir estes passos numa viagem breve por escritos de Winnicott, na qual seguirei por alguns textos traduzidos no Brasil numa sequência cronológica, respeitando especificamente a demanda que julgo importante para pais e educadores.
Na sequência temática teremos o primeiro vídeo e texto com o tema: O Brinquedo e o Brincar.
Visitas: 878
Autor:
Psicanálise Contextualizada 04/05/2021 21:39:50 877
Nascido em abril de1896, na Inglaterra, e falecido em janeiro de 1971, também na Inglaterra,Winnicott foi Pediatra e depois trilhou a formação de Psicanalista soborientação de Melanie Klein, grande nome da Psicanálise inglesa que construiuos principais referenciais teóricos da Psicanálise infantil, sendo consideradaa pioneira no atendimento de crianças dentro deste referencial. Assim, sob ainfluê...
Obtenha dicas para alavancar seu negócio e se tornar um case de sucesso
+ LIDAS
+ COMENTADAS
Pág. 1 de 5 - 101 postagens