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Exercício da cidadania fraterna em tempos de pandemia

Publicado em 16/04/2021


Este texto é a referência de minha exposição temática no evento “Noite de reflexão” promovido pela Escola de Cidadania do Movimento dos Focolares no Brasil, realizado no dia 15/04/2021, de forma on-line, com o tema: “O exercício da Cidadania Fraterna em tempos de pandemia e vacinação”. Além de minha exposição, contou também com as exposições temáticas de Maria Celina Toledo Martins, Enfermeira de Saúde Pública Vitória/ES e também do Sanitarista Anselmo Dantas também de Vitória/ES, sob a mediação de Adnaldo Paulo Cardoso, Terapeuta Ocupacional de Belo Horizonte-MG.


O "Mal-Estar na civilização"

Como referência para esta reflexão, parto do texto publicado por Freud em 1927 “O Mal-Estar na civilização” (1927) [1], onde nos aponta a linha fronteiriça entre o ego e o mundo externo, uma divisão que se torna incerta e, muitas vezes, patológica. O que desejamos na busca da satisfação pessoal se esbarra no que o mundo externo nos propõe. A vida se apresenta com muitas frustrações, em seu caráter eminentemente privativo e pós-traumático, o que Freud percebe nos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. Hoje, por exemplo, estamos diante deste grande drama entre o desejo de vivermos uma vida longa, usufruindo dos benefícios que a vida nos oferece, ainda mais com a emergência da tecnologia, e, em contra partida, nos deparamos com a morte que nos ronda à distância de um aperto de mãos, de um abraço, de um espirro, por conta da COVID-19.


Um dos recursos que usamos para superar esta realidade frustrante são “as medidas paliativas”, como dizia Freud, que depois evolui em “satisfações substitutivas” e, mais para frente, em “sublimação”. No texto “O Mal-Estar na civilização”, Freud vai discorrer sobre o uso da religião como este meio paliativo, sem deixar de pensar também em outros meios de suprir as frustrações humanas. Harari, na mesma linha, em seu livro “Homo Deus”[2], nos apresenta a história da humanidade no campo da necessidade de criar deuses como elemento substitutivo de tudo o que a vida no cotidiano não dá conta, e também pelas incertezas que o ser humano possui em relação ao futuro e ao pós morte.


Contudo, Freud lembra que uma pequena parte da população consegue ter na religião uma forma de encontrar a felicidade pelo caminho do amor, ao dizer: “(...) Protejam-se contra a perda do objeto, voltando seu amor, não para objetos isolados, mas para todos os homens.” (Freud,1927, p.122)


E pasmem para quem pensa que Freud era um ateu racional e intransigente com os religiosos, em seu texto ele chega a dar o exemplo de São Francisco de Assis: “ Talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade (...) essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo, representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar.” (Freud, 1927, p.122)


O ato de amar

Aqui, podemos, para nosso contexto do debate na Escola da Cidadania do Movimento dos Focolares, citar a própria fundadora do movimento, Chiara Lubich que traça o “fio de ouro” das principais religiões do planeta, o qual está contido como espinha dorsal em todas elas, que é o ato de amar. Chiara o traduziu em vida de partilha nos projetos da construção da civilização do amor.


É neste ponto que nasce o conflito, pois o amor se coloca aos interesses da civilização, mas a civilização ameaça o amor. O processo civilizatório se dá pela disputa de poder, pela ascensão de povos em detrimento de outros povos, como cita Freud em “O mal estar na civilização”: “(...) algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização - possivelmente a totalidade da humanidade - se tornaram ‘neuróticos’.” (Freud, 1927, p.169)


Mais recentemente, pelos estudos da história da população negra no Brasil e da luta por uma sociedade antirracista, a pesquisadora, historiadora, geógrafa e filósofa Lélia Gonzales, pinçou o conceito neurose cultural brasileira, quando cita: “Para nós o racismo se constitui como a sistemática que caracteriza a neurose cultural brasileira.” (Gonzales, 2020, p.76)[3]


Sabemos que a pandemia no Brasil tem afetado diretamente os pobres que se constituem, na sua quase totalidade, da população negra. Mesmo que os sintomas e mortes afetaram a todos e todas indistintamente, os menos favorecidos são bombardeados com outras mazelas, como: índices de desemprego, miséria e abandono social. Em Vitória-ES, onde resido, e parte do Brasil, a campanha de vacinação que segue a passos lentos, quase de “lesma”, conduz a população a cadastrar-se nos sites das prefeituras para agendarem a vacinação. Mas como uma pessoa que não tem nem internet em casa vai fazer este procedimento? Ditam normas de controle social e não definem garantias salariais, apoios aos empresários, e o povo tem que enfrentar coletivos urbanos lotados em pleno aumento dos índices de infecção da COVID-19.


Diante da pandemia, nos deparamos com o elemento externo civilizatório que nos traz novamente as frustrações, fura filas, corrupções em torno do processo de compra para as intervenções sanitárias, disputa política e um reflexo evidente e assustador das pessoas se encontrando em praças, festas particulares e muitos nem usam máscara. É o salve-se quem puder! Mas na hora da fila para uma vaga na UTI, quem vai ficar na fila ou até mesmo ter prioridade? O morador de rua ou o político? O arcebispo ou a faxineira do palácio episcopal? O filho do médico ou a filha da empregada do mesmo médico? Minha vaga já esta paga em uma UTI de um grande hospital particular?


Não podemos esquecer quem somos no processo da civilização. Citando novamente Harari, em seu outro livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade”[4], o ser humano chegou onde chegou pela sua capacidade destrutiva e pela sua capacidade de fazer fofoca, hoje, com o agravante das Fake News. Se esquecermos este conflito já citado por Freud entre pulsão de vida e pulsão de morte, Eros e Thanatos, vamos esquecer que nossos esforços de construção da civilização do amor, que é um sonho de poucos mas pode ser para todos, vai ter seu maior obstáculo no próprio ser humano e na própria civilização.


Neurose coletiva

Aqui chego à questão do indivíduo que se “neurotiza” e que se torna patológico. As clínicas de psicologia estão lotadas. Os cursos de Psicologia nas universidades públicas estão entre os três mais concorridos nos vestibulares. Existe uma demanda que transborda no indivíduo mas esta demanda não será suprida se não for pela força do coletivo.


Tenho apresentado a argumentação a muitos de meus pacientes de que a psicoterapia em si é apenas um detalhe do processo de individualização e identificação da dor emocional, mas que o caminho é sair de si e ver o todo, entrar nesta humanidade sabendo como ela é, e por isto fortalecido, para ai sim, em grupo de iguais, e no caso dos adeptos das religiões que tem foco no amar ao outro, podemos sair da dor individual e entrar de forma solidária na dor do coletivo, o coletivo da Escola da Cidadania e outros coletivos. E sem dúvida o coletivo também das ações políticas que precisam ser invadidas por humanidade nova.


Todas as ações que caiam no individualismo e nas necessidades pessoais egoicas, de sofisticação dos desejos pessoais, entrarão em um campo de frustrações. Agora, mais do que nunca, é preciso nos fortalecermos do maior desejo de todos os desejos, pela vida para todos, que passa sim pela ciência para todos, pela vacina para todos, pelo salário para todos. Nossa utopia da civilização do amor é nossa melhor vacina para continuarmos bem humorados no desejo pelo qual galgamos. Vamos exercer com força a cidadania fraterna.




[1] FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1974.


[2] HARARI, Yuval Noah. Homo Deus, uma breve história do amanhã. 1ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 2016.


[3] GONZALES, Lélia. Por um feminismo afro latino americano. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.


[4] HARARI, Yuval Noah. Sapiens, uma breve história da humanidade, 1ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 2020.


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