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O Alienista de ontem e de hoje, no dilema da saúde mental

Publicado em 03/11/2021


Em 1882 um dos maiores clássicos da literatura brasileira era publicado e ninguém melhor do que Machado de Assis para escrever esta obra prima: “O Alienista”. Li este livro pela primeira vez em 1985, na época do meu pré-vestibular, por fazer parte da lista de livros que eram indicados para as provas de língua portuguesa.


Recentemente fiz esta releitura, desta vez, com toda a minha trajetória na Psicologia, 35 anos inserido nos aprofundamentos da Psicologia como Ciência e Profissão, leio “O Alienista”[i] com um novo olhar. Um olhar de quem tem a certeza de que no Brasil a vida segue do mesmo jeito que no ano de publicação desta obra. 


Será que mudou alguma coisa? 

Ontem, o poder público facilitando a vida de especuladores médicos, concedendo favorecimentos para intervenções na saúde, hoje com o desenrolar da CPI do COVID-19 no Senado, o escândalo de favorecimentos à grupos de medicinas para intervenções na pandemia que estão levando a óbito milhares de brasileiros.


O Alienista - Machado de Assis

Ontem, um Simão Bacamarte, que em nome da ciência, da cura e da missão de limpar a cidade da ameaça dos “loucos” que a cada dia a invadiam, que tem aprovação de seus atos pela Câmara Municipal de Itaguaí/RJ, cenário construído no romance de Machado de Assis. Hoje, o plano de saúde Prevent Senior que foi alvo de investigação por indicarem procedimentos de prevenção ao COVID-19 sem reconhecimento científico, fora muitos outros procedimentos em saúde que aconteceram pelo Brasil afora que na desgraça alheia tiveram lucros em plena pandemia, sempre se utilizando do sistema de saúde pública.


Machado de Assis trás em O Alienista, um corte específico da intervenção especulativa da medicina e do favorecimento público sobre a doença coletiva, a demanda da saúde mental. No meu segundo ano cursando Psicologia na UNESP de Assis/SP, participei do Primeiro Congresso Brasileiro pela Luta Anti Manicomial que aconteceu nas instalações da UNESP de Bauru em 1986. Neste congresso iniciava a incansável luta dos trabalhadores do sistema de saúde mental público pela humanização dos manicômios e a abertura dos mesmos. Questão que ganhou força na Lei Paulo Delgado 10216 de 2001, que instituiu um novo modelo de tratamento aos portadores de transtornos mentais no Brasil. Eu tive uma boa experiência no ano de 1987 onde trabalhei por quase três meses na condição de estagiário no manicômio estadual da cidade de Casa Branca/ES, na época eram 1200 internos, sendo que 80% deles não se tinha o paradeiro, pois foram despejados neste manicômio no período do regime militar de 1964 a 1985.


O Alienista (aquele ou aquela que trata de indivíduos com transtornos mentais), com uma posição de caridade, com a fina intenção de ajudar aqueles que sofrem por uma dor na alma, se aproveita da fragilidade destes sofredores e da angústia de suas famílias que não sabem lidar com a “loucura”, propõe que a Câmara Municipal favoreça a estruturação de um espaço especializado (manicômio), que na obra leva o nome de “Casa Verde”.



A Casa Verde de Machado de Assis ainda sobrevive!

Os manicômios de ontem são hoje as clínicas psiquiátricas, que na maioria delas acabam sendo subsidiadas pelo órgão público, que por medidas cautelares fazem com que o estado tenha que financiar muitos tratamentos daqueles que não podem pagar; também podem ser comparados com os consultórios psiquiátricos de hoje, principalmente nos esquemas que observamos na saúde pública dos municípios em que contratam psiquiatras para diagnosticar e medicar, sem um projeto de saúde mental nos moldes de assistência contínua e humanitária previstas pela Lei Paulo Delgado.


Artista Candido Portinari

Conheço vários Psiquiatras que rodam em vários municípios concomitantemente fazendo este tipo de procedimento. Até presenciei um fato em que o Psiquiatra antes de tirar férias de um dos muitos municípios que atuava, deixava uma lista enorme de receitas assinadas para serem distribuídas no período de suas férias.


Veja este trecho da obra: “Que importa? Temos ganho muito – disse o marido (...) D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via láctea de algarismo.”[ii]. Aqui, o alienista dialoga com sua esposa sobre a possibilidade de realizar despesas de lazer da família, por ocasião do lucro que a “Casa Verde” já estava registrando.


Este cenário me remontou a um período e que alguns médicos me ofereceram sociedade em uma clínica de recuperação de dependentes químicos, com o argumento de que eu entendia bem de tratamento para dependentes, pois já havia atuado em comunidades terapêuticas do gênero e por que seriam estabelecidos parcerias com prefeituras de toda a região. Na época, refutei tal proposta por ver com clareza o caráter mercantilista com verba pública.


Ao longo dos meus trinta anos de carreira, que foram vivenciados quase sempre em cidades de interior, recebi muitos pacientes que solicitavam minha intervenção por que as famílias estavam negociando apoios de câmaras municipais, fator que sempre refutei também. Enquanto lutávamos para a implantação no SUS da Lei Paulo Delgado, as movimentações espúrias por parte de profissionais da saúde e também de políticos, puxavam para manutenção de um sistema de saúde mental de lucratividade para a medicina e favorecimentos aos políticos. Como em O Alienista este cenário é retratado de forma até humorística. Depois de 140 anos temos um cenário muito parecido.



Especulação, diagnósticos errados e tratamentos ineficazes! 

Artista Candido Portinari Ainda quero trazer aqui mais uma faceta do livro de Machado de Assis, que é sobre o quanto a especulação diagnóstica sobre os transtornos mentais, associando a obsessão de Simão Bacamarte em decifrar o perfil da loucura de cada sujeito que ele definia que precisava ser internado na “Casa Verde” de ontem, com os processos diagnósticos a partir do CID 10 e DSM V para transtornos emocionais, que se faz atualmente. Brinco que dificilmente um sujeito sai de uma consulta Psiquiátrica sem ser medicado.


Mas quero trazer aqui a referência mais escandalosa que tenho presenciado, que é o enquadre de crianças no Transtorno do Espectro Autista, onde se abriu um leque tão enorme de sintomas que cria o enquadramento de muitas crianças neste espectro, levando as escolas a ficarem enlouquecidas para tentarem adaptar o processo educacional a esta demanda, com o desalento de ter um Ministério Público exigindo a inclusão. Lógico que é necessária a inclusão, mas a partir de qual diagnóstico? Na “Casa Verde” de Itaguaí, o Alienista viu sua casa desmoronar por pressão da população quando quase toda a cidade estava internada por algum diagnóstico do Alienista. Hoje, nas escolas, estamos vendo um crescente número de crianças “Laudadas” (diagnósticos superficiais) levando as escolas a serem o novo espectro manicomial da sociedade moderna.


O Alienista é uma obra tão impactante, que na edição atual que fiz minha releitura, editada pela editora Antofágica, Daniele Lima, Filósofa e pesquisadora da obra de Michel Foucault levanta a hipótese de que Foucault tenha lido O Alienista para embasar seu pensamento filosófico sobre a produção da loucura e os processos de cárceres manicomiais.


Enfim, uma obra a ser muito explorada, de um escritor que pensou para muito além de seu tempo, Machado de Assis.



[i] ASSIS, Machado de. O Alienista. lustração de Candido Portinari. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019

[ii] ASSIS, Machado de. O Alienista. lustração de Candido Portinari. pg. 63. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019



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