Meninas erotizadasPublicado em 11/04/2024 Trago aqui uma cena da mãe que, aos berros em um shopping, aborda sua filha de aproximadamente oito anos para que tivesse compostura no sentar, pois sua calcinha estava aparecendo e ela já era uma “mocinha”. A menina brincava livremente de pique pega com outras amigas pelos corredores do shopping. A avó, provavelmente materna, interrompe a mãe da menina e diz: “Filha, ela é apenas uma criança, é você quem está colocando malícia no seu olhar”. Hoje, influenciadoras de redes sociais já dedicam tempo e energia no esforço de divulgar produtos para meninas. A antecipação da vida adulta nas crianças é um fenômeno antigo da Sociedade Ocidental, baseado na transformação destas em miniaturas de adultos. E, no campo do feminino, é multiplicada em diferentes possibilidades de ser mulher e adaptada a diferentes realidades culturais e geográficas, porém com o corpo sempre “perfeito” (e uma grande referência estética de décadas neste sentido é a boneca Barbie). A antecipação da erotização das meninas é algo cada vez mais crescente na atualidade. O mundo da estética feminina vem trabalhando esta antecipação pela publicidade infantil como uma estratégia de introduzir a necessidade dos cuidados imagéticos que engloba a ideia do corpo perfeito, cabelos soltos e suaves, pele límpida e macia, com uma forte pitada de erotização. Há uma aceleração cruel na preparação de crianças meninas para adentrarem o universo dos padrões estéticos, visando trazer estas futuras consumidoras da indústria da beleza para um agora que não compreendem. Em função disso, há um grande receio de que meninas crianças sejam vítimas de assédio sexual por homens adultos, visto que, de fato, há um aumento substancial no número de denúncias deste tipo de ocorrência. Porém, o cerceamento da forma de ser das crianças em função desta preocupação, para que já pensem sobre esta demanda erótica a partir do referencial de adultos, torna ainda mais obsessivo este controle por levar os pais à antecipação de uma demanda que, na maioria das vezes, a criança sequer está preocupada. E, se esta preocupação já estiver fazendo parte do referencial da criança, isso já é um sintoma de que algo está fora de lugar nesta criança. A expressão corporal das meninas crianças é desprovida de erotização. É a partir da adolescência que esta demanda começa a ser despertada. Nem mesmo em meninas cuja primeira menstruação chega ainda na infância, antes dos 12 anos, a conotação erótica não fala mais alto. Porém, a maioria das famílias associam a primeira menstruação como a chegada da vida de mulher e consequente demanda sexual. Lógico que muitas crianças meninas são introduzidas à erotização de forma indireta, dentro de uma linguagem subliminar muito explorada pela publicidade infantil. Também há uma antecipação de conteúdos nos influenciadores digitais que passam uma sensualidade nas meninas com o forte propósito de venda de cosméticos, roupas, estilo, cabelos e arquétipos de atração em geral. Em muitos salões de beleza, meninas já se tornaram clientes frequentes. E este perfil segue com forte conotação de estarem belas para o público masculino, consolidando estruturas machistas com a falsa imagem de um perfil de mulheres autônomas e “empoderadas”. E olha que são apenas crianças. Como podemos perceber a "morte" da menina criança Um dos sintomas que podemos observar na clínica psicológica é que crianças meninas já rejeitam bem cedo a ideia de brincar com bonecas, já acham que as deixam muito infantis. Lembro recentemente de uma menina de seis anos que, ao ver minhas bonecas no armário de brinquedos da clínica, disse: “Você acha que vou brincar com estas bonecas? Elas são ridículas...e eu já sou uma moça.” Diante disso, pode-se perceber alguns comportamentos que podemos ir caracterizando como sintoma da morte da menina criança e construção de uma erotização antecipada no referencial delas. Dentre eles, estão: 1) Excesso de enfoque nas roupas que pareçam com as de mulheres adultas. Aqui tem uma certa normalidade, pois as meninas espelham os hábitos das mulheres adultas que tem referências no seu círculo familiar. Mas passa a ser uma preocupação quando a menina perde o interesse até em sair de casa e, quando sai, não consegue ter a espontaneidade para brincar por estar muito preocupada com sua postura. Ou quando a criança começa a exigir um tipo de vestimenta que não condiz com hábitos de seu ambiente familiar e que pode já estar sendo induzido por programas e redes sociais. Pior ainda, quando a menina gosta de vestir o básico e roupas que lhe deixam mais livre e acaba sendo vítima de bullying por ser apontada como menino, machinho. 2) Muita necessidade de se maquiarem, só conseguindo sair de casa após tal processo, inclusive chegando a levar seus estojos de maquiagem na escola para disputarem com outras meninas (fator agravado quando a escola permite sem intervir). Conheço o caso de uma mãe muito atenta a esta demanda que teve uma forte dificuldade com sua filha de sete anos, que não queria ir mais à escola por suas colegas de sala estarem disputando quem estava mais bonita a partir das maquiagens e tal mãe não permitia a menina a participar desta dinâmica, mesmo tendo condições financeiras para tal. A mãe, ao questionar a escola, recebeu a orientação que não conseguiriam intervir em nada nesta demanda, pois a maioria das meninas estavam já neste comportamento até incentivado pelos pais. Esta mãe resolveu o problema retirando sua filha da escola e a colocando em uma que tinha uma postura de não permitir este tipo de dinâmica. 3) Muita erotização de programas televisivos, jogos on-line com personagens com forte apelativo de corpo erotizado e influenciadores digitais para crianças vendendo ostentação econômica e postura de conquistas por seduções a partir da estética corporal. Se hoje perguntarmos a muitas meninas o que elas querem ser quando crescer, a resposta será que serão influenciadoras digitais e ficarão milionárias. É preciso educar crianças como crianças Não dá para dizer que uma criança que vivencia a sua infância direcionada nas garantias do amanhã, ou apenas desejando em ser uma adulta, será isso ou aquilo no futuro. A única garantia que temos no processo educacional com crianças é que, se a elas for oferecido ambiência para que desenvolvam a criatividade do brincar livre, terão mais chance de se tornarem adultos mais felizes e espontâneos. Mas se, desde a infância, forem conduzidas por um controle e repressão a serem miniaturas de adultos, poderão estar colhendo futuras pessoas rígidas e ou frustradas, pois o padrão da estética feminina (ou melhor, a ditadura da estética) leva à exclusão da maioria das mulheres deste padrão na vida adulta, e, consequentemente, ao desenvolvimento de sintomas emocionais por não terem atingido este referencial. As mulheres adultas que exercem influência no processo educacional de meninas crianças, podem colaborar e muito para que estas aprendam o caminho para poderem estar livres das amarras do machismo estrutural de nossa sociedade. Sabemos que erotizar meninas e transformá-las em mulheres adultas precocemente, dentro de um referencial de estética com foco na sensualidade erótica, é manter o modelo da mulher a serviço dos homens. Prevenir meninas de comportamentos misóginos, predatórios e assédio sexual não tem nenhuma relação com a necessidade de transformar as meninas em objetos de consumo da estética sensual e erótica. Tem a ver com cuidar para que tais meninas sejam apenas crianças em seu tempo devido. Quanto mais tardia for a entrada das meninas no referencial erótico sensual, ou na transformação de seus corpos em objeto de prazer sexual, mais solidez de autonomia e de identidade de mulher no futuro elas poderão ter. |
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