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A quem o feriado de 20 de novembro (consciência negra) incomoda?

Publicado em 18/11/2024

A Lei Federal  14759 de 2023 transformou o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra em feriado nacional, 12 anos após sua institucionalização. Esta é uma luta de longa data, remetendo desde o tráfico de negros pelos navios negreiros, incluindo mais de 600 rebeliões de escravos em alto mar registradas, tendo 26 casos registrados nos quais as tripulações tomaram o controle dos navios e retornaram para suas regiões africanas. Assim, o movimento revolucionário sempre foi baseado na resistência à escravidão e, se observarmos o quantitativo de quilombos que ainda hoje resistem no Brasil - segundo o IBGE são 494 quilombos espalhados no território brasileiro com uma população que chega a 1,3 milhões - entendemos a atualidade dos movimentos negro, que diz respeito à posição de um povo que vivia em seus territórios no Continente Africano e que foi transformado em mercadoria após capturado por colonizadores europeus para força de trabalho escravo.


Foram 360 anos de tráfico negreiro no Brasil e 136 anos de uma falsa abolição, pois foi lhes dada a liberdade sem a possibilidade de terem terras para plantar. Saem das porteiras que os escravizavam e retornam para trabalharem para seus ex proprietários. E percebemos estes ecos vividamente nos tempos atuais.


Hoje, temos um grande número de movimentos negros no Brasil, tendo destaque o Movimento Negro Unificado MNU, UNEGRO Brasil, e centenas de coletivos que estudam e buscam a ancestralidade da diáspora africana no Brasil anterior à escravatura. Temos as teses de doutorados nas ciências humanos, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Filosofia, História, etc, produzidas por pesquisadores negros e negras nas Universidades Federais do Brasil, graças ao incremento das cotas raciais. E não é à toa que muitos questionam as cotas raciais, pois elas causam exatamente a eclosão da verdade do Brasil escravocrata.


Desta forma, o feriado de 20 de novembro se difere de outros feriados no Brasil devido ao caráter de conquista dos movimentos negro ao longo da História. Enquanto nos demais feriados apenas curtimos a possibilidade de celebração simbólica e tempo livre (levando muitos empresários a reclamarem dos mesmos), este feriado faz emergir as barbáries de um país genocida, racista e que ainda colhe trágicos dados sociais pela gritante diferença socioeconômica. Para mim, este é o principal de todos os feriados, pois faz-nos lembrar da memória social que o país tentou apagar da História Oficial. Sendo assim, quero então trazer três pontos cruciais que fazem deste feriado motivo de incômodo, dentre tantos outros:


Escravatura, o maior genocídio registrado da humanidade

A estimativa é que 14 milhões de escravos morreram ao longo do período de tráfico pelos navios negreiros no Atlântico, tendo cerca de 60% dessas mortes ocorridas em alto mar. Nos 360 anos de tráfico registrado, foram capturados em torno de 24 milhões de africanos dentre diferentes países. Mas nossa história colonialista evidencia recorrentemente apenas o genocídio provocado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, que levou à morte 7 milhões de Judeus (metade do que aconteceu com o tráfico negreiro). O Brasil foi o país mais escravista das Américas, recebendo aproximadamente 40% dos escravos vendidos dentre os países americanos, com uma perspectiva de aproximadamente 5 milhões de escravos.


O processo foi tão cruel que, nas embarcações oficiais, tinha o “Livro dos Mortos”, o qual computava o quantitativo de escravos mortos durante o translado no Atlântico e que causou, inclusive, a mudança da rota marítima dos cardumes de Tubarões, que devoravam os escravos mortos jogados em alto mar. Muitos escravos entravam em depressão e, uma vez estando no Brasil, sua expectativa de vida era de 33 anos de idade. Se levantarmos o número de negros que morreram por chibatadas, falta de estrutura de moradia e trabalho intenso diário, não vamos obter respostas claras. Mas, com certeza, o genocídio continuou e continua até hoje, mas agora sob os punhos da polícia militar brasileira e da ausência do estado nas comunidades periféricas, onde a população negra chega a 70%. No livro “Um Defeito de Cor”, da escritora Ana Maria Gonçalves, podemos visualizar este cruel genocídio da colônia imperial brasileira.


A crueldade dos Cristãos e os benefícios da Igreja Católica atrelada à coroa portuguesa

Aqui, temos outro elemento que constrange muitos cristãos, e, no Brasil, em especial os Católicos. Porém o posicionamento dos cristãos também não foi nada adequado ao Cristianismo nos países da América. Nos Estados Unidos, os vilões cristãos eram os pastores da Reforma Protestante vinculados ao Presbiterianismo, como retrata tão bem a escritora Maryse Condé em seu livro, “Eu, Tituba – Bruxa negra de Salém”, romance que parte de um episódio real da história da escravatura dos Estados Unidos e mostra o quanto as Igrejas Cristãs nos Estados Unidos também estavam atreladas à escravatura institucionalizada.


Em 1452 o Papa Nicolau V expediu uma Bula Papal que autorizava a captura de pagãos, incrédulos e ditos inimigos de Cristo. Assim, a Coroa Portuguesa, sob proteção divina, estava livre para invadir países da África e capturar seus cidadãos como escravos. O Papa Nicolau V era tido como humanista e defensor do Renascimento, mas não conduziu sua visão então iluminada para os povos da África. Para que houvesse respaldo, criaram teses teológicas baseadas na ideia de que, no episódio em que Caim matou Abel, este foi expulso do Éden e seguiu para regiões da África, se estabelecendo e condenando seus descendentes (os negros) à perdição. Outra defesa teológica, também presente no Velho Testamento, vem do episódio em que Cam é amaldiçoado pelo pai Noé, após o dilúvio. Cam viu Noé deitado nu após ter-se embriagado, e foi contar aos irmãos. Assim, Cam teria partido com sua maldição imposta por Noé para regiões da África.


Durante a escravatura no Brasil, muitos Bispos e Padres ganhavam benefícios financeiros com o tráfico negreiro. Em torno de cinco das maiores congregações religiosas da época, compraram escravos e favoreceram os trâmites logístico para a Coroa Portuguesa, como foi o caso da Congregação dos Beneditinos, que tinham mais de mil escravos para trabalhar em fazendas de propriedade da Congregação entre Rio de Janeiro e São Paulo. Muitos conventos de países da América Latina prestavam suporte ao recebimento dos capturados, onde eram trocados seus nomes de origem por nomes cristãos e batizados. Tais serviços eram remunerados pela Corte.


Sabemos que, em todas as religiões de base Cristã, lideranças religiosas que sempre defenderam a liberdade e lutaram contra qualquer forma de escravidão. No entanto, estas são ações individuais e de grupos isolados, que acabam não representando a postura das instituições em si, tanto no Catolicismo como nas diferentes Igrejas da reforma protestante, ou o que hoje chamamos Evangélicos. A História oficial poupou estas instituições que, direta ou indiretamente, colaboraram com a escravatura no Brasil. Para quem está vinculado a uma religião de base cristã, sabemos que é preciso estar inteirado da história da religião que segue, e se posicionar a partir da consciência que carrega. Mas falar destes episódios que aqui apenas estou pincelando brevemente, traz, sem dúvida alguma, muito incômodo para quem pratica religião.


O branqueamento da população brasileira

Quando o Brasil já tinha 70% da sua população entre negros, pardos, mestiços e indígenas por volta de 1870, a saída política e econômica foi o projeto de branqueamento, com o incentivo da Coroa de financiar as viagens de imigrantes europeus. A ideia principal seria estabelecer um branqueamento paulatino, à medida em que europeus fossem se envolvendo com os negros. Porém, argumentos que camuflavam esta intenção, dizendo que os europeus já estavam adaptados ao processo de industrialização, ajudando a modernização do Brasil. Muitos receberam até garantias de empregos e terras para produzirem. O Brasil tinha que desfazer a ideia de um país africano no cenário comercial mundial. E, para respaldar ainda mais esta estratégia, intelectuais, ao longo da História subsequente, criaram o sentimento nacional de existência da democracia racial no país. Este pensamento e sentimento ainda hoje é muito veiculado na produção musical, filmes e novelas. Continuamos acreditando que somos um país abençoado por Deus, e que não temos guerras e que o racismo estrutural é um mito.


O caminho de uma longa trajetória de conquista para a construção de uma nação antirracista

Diante de todos estes tópicos apresentados, o feriado de 20 de novembro ser celebrado nacionalmente pela primeira vez a partir de 2024, faz criar novas perspectivas, vislumbrar um pais da igualdade de direitos, um pais antirracista. Porém, as sequelas destes 360 anos de tráfico negreiro e subsequente falsa abolição, até agora percebida na realidade do povo brasileiro, são imensuráveis. Mas podemos vislumbrar um futuro se olharmos para a História com a noção clara de como chegamos neste ponto. E este olhar faz sofrer, chorar e enojar. Este processo de conquista de direitos sociais e reparações históricas sobre o sofrimento dos negros da diáspora africana no Brasil precisa ecoar na voz dos muitos movimentos sociais que incansavelmente estão gritando, denunciando e reivindicando direitos. Este 20 de novembro é a força e a esperança na construção de uma nação livre das desigualdades sociais.


Mas o que um Psicólogo tem a ver com tudo isso?

Os índices de depressão e doenças emocionais no Brasil não surgem do nada. São resultado de uma história de genocídio, destruição de laços familiares e culturas. uma ação voltada para a reconstrução da dignidade de todos os cidadãos deste país, dentro da ideia de equidade de direitos e condições dignas de vida, poderá reverter esta trajetória que nos condena ao fracasso enquanto nação. Ser profissional de Psicologia apenas voltando o olhar para demandas individuais, sem estar conectado com a História e a realidade que nos rodeia, é, no mínimo, mais um ato colonialista elitizante.


Hoje, nosso maior problema social é o racismo que impera na política, religiões cristãs e na exclusão social. Não existe sociedade antirracista sem igualdade de direitos. E uma Democracia não se sustenta onde desigualdade social.






Bibliografia


ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.


CONDÉ, Maryse. Eu, Tituba. Bruxa negra de Salem. 8. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.


FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.


GOMES, Laurentino. Escravidão: da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil, volume 2. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2021.


GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 21. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2019.


LEWIS, Isaac Warden. Os apartados no Brasil Império. Manaus: Editora Mundo Novo, 2016.


NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.


SANTOS, Ynaê Lopes dos. Racismo brasileiro: uma história da formação do país. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2022.


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