É possível um país com um abismo entre pobres e ricos que alcança uma diferença de renda de 14,4 vezes ter saúde emocional?

Hoje em dia, quando se fala sobre projetos sociais para diminuir a pobreza, e até mesmo iniciativas solidárias focadas nos mais pobres, muitas vezes surgem críticas de que são ações de esquerda. Lembro-me duma situação em que uma pessoa acreditava que o padre de sua paróquia, da Igreja Católica, era de esquerda porque falava sobre a importância dos cristãos agirem com solidariedade em relação aos desassistidos. Naquele momento, apenas disse a ela que o padre estava ensinando o evangelho de Cristo.

O aumento do número de famílias morando nas ruas e o elevado índice de famílias abaixo da linha da pobreza mexem profundamente com nosso emocional. Por mais racionais que sejamos, este cenário vai minando nossa estrutura. E foi com essa perspectiva, sempre voltada para o foco no social e na defesa dos mais pobres, que surgiram em mim demandas que brotaram da minha formação cristã e, posteriormente, dos meus estudos em Psicologia, Filosofia, Sociologia e Antropologia.

Desde antes da universidade, aos 16 anos, já desenvolvíamos ações sociais no grupo de jovens cristãos do qual participávamos, na Paróquia São José, em São José do Rio Pardo (SP). Então na universidade, enquanto cursava Psicologia, aprofundei meus conhecimentos no campo do exercício da Democracia e na defesa da mesma, ao mesmo tempo que busquei conquistar a consciência coletiva em prol do cuidado com o Bem Público. O que é de todos e para todos, que se expressa no exercício da política em suas diferentes instâncias: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Logo no primeiro ano após minha formatura em Psicologia, fui trabalhar na cidade de Piraju (SP). Junto da minha esposa, Maria Celina, fomos contratados pela Paróquia de São Sebastião, por iniciativa do padre Roberto Bedusch e incentivo dos casais da paróquia, para implantar o CEIFAR (Centro de Integração Familiar) na área da saúde da mulher e da reprodução humana. Em 1993, assumi a missão de implantar a primeira Secretaria Municipal de Assistência Social da história do município, antes mesmo da aprovação da Lei 8.742 de Assistência Social, de 07/12/1993. Essa experiência foi-me concedida pelo então recém-empossado prefeito, José Geraldo Passanado.

Assim, pude iniciar minha carreira profissional com a dimensão do cuidado do Bem Público e, ao mesmo tempo, avançar na minha experiência profissional clínica privada. Habitar estas duas dimensões, associadas aos serviços no campo social e de saúde por meio da ação pastoral, decorreu do trabalho conjunto com minha esposa e com a participação ativa das famílias da cidade.

 

Marcas dessas ações, que, depois de 30 anos, são relembradas na forma de homenagem que recebemos com o título de Cidadão Pirajuense, concedido pela Câmara Municipal de Piraju, por intermédio do vereador Valberto Zanatta. Com isso, quero apresentar neste artigo o texto que li no dia da homenagem, em 6 de dezembro de 2024, aos vereadores e à população local presente.

“Confesso que nunca fui muito fã de homenagens públicas, especialmente em câmaras municipais. Já até recusei algumas indicações, tanto em Assembleias Estaduais quanto em Câmaras Municipais. No entanto, a indicação do vereador Valberto Zanatta, acatada pelos vereadores desta casa legislativa do município de Piraju (SP), foi algo que eu não poderia deixar de aceitar. Não apenas mexeu profundamente com os meus sentimentos, mas também fez um resgate da História. E quem viveu essa história, faz raiz, tem o que contar, o vento não leva, a demência não apaga, e podemos construir perspectivas futuras a partir da nossa ancestralidade.

O vereador Valberto Zanatta fez, sem dúvida, uma carreira brilhante nos serviços públicos, e não há como negar. E, por este motivo, fiquei honrado pela sua indicação, por ser legítima e verdadeira.

Estamos aqui, entre nós, uma geração que resistiu ao longo dos anos, de 1991 a 1994... até 2024. Diante de mim, vejo muitos jovens daquela época que hoje são pais, avós, e muitos outros que nem sequer haviam nascido. Aqui, hoje, ocorre o encontro de gerações. Este momento é um resgate, mas também um compromisso com uma missão: a construção da Civilização do Amor.

E a Civilização do Amor começa com o zelo pelo Bem Público.

Juntos, em Piraju (SP), traçamos uma trajetória de mudança no cuidado com o Bem Público. Nosso querido amigo e irmão em Cristo, José Geraldo Passanato, foi um dos que, em um coletivo de cidadãos esperançosos por melhorias sociais, decidiu assumir o Executivo da cidade já em 1992, vencendo uma eleição municipal que parecia impossível de vencer. Desde então, a cidade seguiu novos rumos. Acertos e erros foram vivenciados, mas o maior de todos os acertos permaneceu: o exercício da Cidadania, do Bem Público, pela via da Democracia. Esse processo está legitimado neste momento, nesta nobre casa do legislativo municipal. Espero que os novos legisladores, eleitos para o próximo mandato, mantenham a dignidade e o respeito representativo desta casa, e continuem defendendo a Democracia e dando luz em leis e ações aos projetos sociais que favoreçam os mais pobres.

Em 2022, um grupo de amigos nos visitou em nossa casa em Vitória (ES). O casal, Ivan e Claudemir ficaram conosco, e a assistente social Rosa, que na época nos dava grande suporte para a criação da primeira Secretaria

 

Municipal de Assistência Social deste município, também esteve presente e lembrou-me do início da secretaria e o quanto elas foram valorizadas como Assistentes Sociais. Chegou a afirmar: “Naquela época, aprendi de fato como atuar no social de forma cidadã”.

José Geraldo Passanado, lembro bem que, quando você chegou à prefeitura, as Assistentes Sociais estavam confinadas a uma minúscula sala ao lado do gabinete da gestão anterior. Era um modelo arcaico de coronelismo, onde o serviço social era tratado como favores políticos e migalhas para os pobres. Você, José Geraldo, deu carta branca para criarmos a Secretaria Municipal de Assistência Social com dignidade, algo que permanece até hoje.

Lembramos também do padre Roberto Bedusch, um nome que ficará para a história de Piraju. Ao longo da minha vivência na Igreja Católica, nunca encontrei um padre tão dedicado e audacioso quanto ele. Ele foi um verdadeiro agente de transformação para a cidade de Piraju-SP. Foi ele quem nos convidou a sermos agentes paroquiais, responsáveis por implantar o planejamento familiar natural. E foi assim que nasceu o CEIFAR (Centro de Integração Familiar), financiado pelo dízimo da Paróquia São Sebastião. Este centro se tornou uma referência mundial pela eficácia do Método de Ovulação Billings (MOB), e a Maria Celina foi a grande baluarte do ensino desse método para tantas mulheres desta cidade. Muitos filhos que nasceram aqui foram desejados e escolhidos com dia e hora marcados para a fecundação. E hoje o MOB é referência para a medicina para casos de infertilidade da mulher.

Tudo isso, porém, pode parecer muito pouco diante do cenário da história da Humanidade pelo planeta Terra e das realidades emergentes, tanto para nossa cidade quanto para diversos países ao redor do mundo. Mas tudo o que fizemos, e continuamos a fazer, eu, você, todos nós que buscamos a promoção da vida em todas as suas dimensões, soma para fazer deste planeta e desta humanidade um lugar digno das maravilhas e dádivas que o Deus da vida nos ofereceu.

Que este dia seja um marco na conjugação do verbo esperançar, como tão bem elucidou o Patrono da Educação no Brasil, Paulo Freire, que nos remete a conjugação da esperança na condução de esperançar, de não esperar, mas fazer acontecer com alegria, confiança e determinação.

Façamos deste momento um marco do resgate da História para, firmes, conseguirem em Piraju (SP), dar continuidade ao zelo pelo Bem Público, pela proteção da Democracia e pela construção de uma Sociedade onde todos possam conjugar os direitos humanos na igualdade e dignidade.”