Lutos e pulsão pela vidaPublicado em 21/05/2025 O luto é um estado de elaboração de uma perda. Podemos vivenciar o luto pela morte de parentes ou amigos, mas também por pessoas que tínhamos como referência em algum campo da vida, como um escritor, músico, ator, entre outros. No entanto, o luto não se restringe à perda de pessoas. Passamos por lutos diversos, como perdas materiais, derrotas em competições, cancelamentos de eventos, entre outros. Sempre que nos deparamos com perdas que nos remetem a sentimentos de vazio, frustração, tristeza, angústia e introspecção, estamos vivenciando o estado de luto.
Na psicanálise a partir de Freud, podemos adentrar o tema do luto compreendendo que vida e morte coexistem em constante tensão. O que impulsiona a vida é, paradoxalmente, a presença da morte. Freud nos apresenta as forças psíquicas de Thanatos (pulsão de morte) e Eros (pulsão de vida) como constitutivas da estrutura psíquica do sujeito que, ao longo de seu desenvolvimento, estará constantemente polarizado entre essas duas pulsões. Quando a pulsão de morte se sobressai à pulsão de vida, podemos compreender que o sujeito está atravessando perdas estruturantes de desejo, especialmente quando lhe falta o fator desejante, ou seja, a pulsão de vida capaz de sobrepor a pulsão de morte. A cultura da perda como processo de transformação
Aprender a lidar com perdas estruturantes ao longo da vida pode nos colocar em uma posição psíquica desejante e pulsante — principalmente quando essas perdas são compreendidas como etapas de um processo, como passagens. É claro que, nas idades iniciais e até na adolescência, a capacidade de lidar com perdas e vivenciar o luto dependerá não apenas do sujeito, mas também do ambiente que o cerca. Pais, parentes, amigos e, evidentemente, a própria estrutura social em que ele está inserido. Ou seja, a Cultura.
Desde que nascemos, estamos perdendo. Perdemos o útero, depois os seios da mãe, em seguida o corpo infantil, e, logo, perdemos os pais de criança para então termos que conduzir a vida por nós mesmos. Se, nessa trajetória, os ambientes não forem acolhedores e estimulantes, e a Sociedade ao redor valoriza as instabilidades e a morte — tratando-as apenas como tragédias e não como transições — aprender a lidar com as perdas se torna difícil. Assim, o luto deixa de ser passagem e torna-se um sofrimento paralisante. O luto como porta para o desejo e a vida
Entrar em um novo momento da vida, ao ter que perder processos anteriores, pode ser angustiante. Isso pode levar à paralisia, à perda do desejo e fazer com que o luto se transforme em sintoma de angústia ou depressão — quase eterno. Porém, no próprio processo de elaboração do luto, há a possibilidade de reconexão com o desejo e com a pulsão de vida. Vivemos em um sistema cultural que prioriza a morte em detrimento da vida. Isso é evidente na forma como as notícias são veiculadas: Há ênfase em catástrofes, homicídios e conflitos entre grupos e nações. Poucas são as notícias que valorizam a vida, o amor e a solidariedade — aspectos ligados à pulsão de vida. Isso ocorre porque o espetáculo do caos atrai mais atenção e ativa nosso temor mais profundo: O medo da morte. A ancestralidade, a agressividade e o impulso de destruição
Diante de qualquer sinal de ameaça à vida, entramos automaticamente em estado de alerta e defesa. Nesse ato defensivo, muitas vezes atacamos antes de sermos atacados — uma lógica que revela nossa fragilidade e a tentativa de compensá-la com uma atitude de onipotência. Sentimo-nos quase deuses, mas tomados por um medo profundo de morrer. Isso instaura uma cadeia de defesas entre as pessoas, nos tornando, enquanto espécie, destrutivos — pois passamos a destruir aquilo que representa ameaça.
Quando percebemos, já ofendemos, já atacamos. Com isso, resgatamos uma ancestralidade destrutiva: Sobrevivemos por meio da autopreservação e, assim, desenvolvemos uma identidade agressiva por excelência, como já apontou Yuval Harari em seu livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade. Para tentar amenizar essa herança destrutiva, a Humanidade desenvolveu, ao longo do tempo, formas culturais — como a religião — que promovem o amor. É possível identificar, em várias religiões ao redor do mundo, um fio condutor que prega: “Não faça ao outro o que não gostaria que fizessem a você”. Psicanálise, esperança e transformação social
Religiões resgatadas da ancestralidade africana, da diáspora forçada pela escravização colonialista, também apontam para o cuidado com o outro, com o meio ambiente e com a coletividade. No Brasil, a ancestralidade indígena e as práticas religiosas dos povos originários revelam esse mesmo respeito — com destaque para a espiritualização da floresta e dos seres vivos como forma de protegê-los. Podemos entender este traço através do indígena Davi Kopenawa e Bruce Albert no livro “A queda do céu”, onde revela a força da espiritualidade Xamã na floresta. Apesar disso, nem mesmo esses movimentos religiosos que defendem o amor e a solidariedade conseguiram conter a fúria defensiva dos sapiens, cuja reação diante da ameaça é a destruição. Em muitas ocasiões, o impulso de vida é usado apenas para evitar a morte, não para fomentar a vida em si.
Freud reconheceu esse fracasso em diversos textos, como O Mal-Estar na Civilização, O Futuro de uma Ilusão, Totem e Tabu. Para ele, tanto o controle pelo Estado (com suas leis) quanto pela religião falham se o ser humano não desenvolver uma auto-percepção de seus movimentos internos, reconhecendo suas pulsões de vida e morte. Essa construção é um processo longo, tanto no nível individual quanto coletivo. Em 1919, na Conferência de Budapeste após a Primeira Guerra Mundial, Freud defendeu a psicanálise como uma ferramenta também social que abre caminhos para pensar a transformação das estruturas psíquicas e sociais a partir da análise e da percepção de si.
A busca por respostas sobre como evitar guerras, destruição ambiental e práticas discriminatórias também é uma expressão da pulsão de vida, que nos impulsiona a não aceitar passivamente uma cultura de morte. As ciências humanas - e aqui destaco a psicanálise, campo em que atuo — são formas de criar novas visões e possibilidades de transformação da realidade. Nesse sentido, é possível, sim, fomentar esperanças a partir da psicanálise. Podemos vislumbrar caminhos de mudança, como nos propôs Paulo Freire — educador brasileiro que levou sua pedagogia da esperança ao mundo — mostrando que é possível caminhar mesmo diante da escuridão, cunhando para isso o termo “esperançar”.
As lutas são imprescindíveis e necessárias para a elaboração das perdas e das passagens. Mas é preciso que essas lutas nos impulsionem a continuar caminhando. Caso contrário, o luto mata a pulsão de vida e fortalece a pulsão de morte. |
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