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Você está louco?

Publicado em 19/02/2019


Assisti ao filme “No portal da eternidade” (At Eternity’s Gate), França, 2019. Direção de Julian Schnabel. O filme trás os últimos dias da vida do pintor Vincent Van Gogh que é interpretado pelo ator Willem Dafoe, um dos bem cotados ao Oscar de 2019. Sem dúvida Dafoe arrasa na sua interpretação.

Independente da linguagem cinematográfica em si, e se os fatos são ou não relevantes na perspectiva de serem ou não verídicos, o filme consegue nos conduzir a uma reflexão aprofundada sobre a questão da saúde mental, e por que não dizer da temível temática da “loucura”.

Chorei sim. Principalmente quando o filme nos faz entrar na genialidade de Van Gogh e na incapacidade dos cidadãos comuns, não gênios, de entenderem os gênios. Sua obra não era entendida, pois incomodava aos olhos do senso comum. Se eu não consigo ver e entender o outro que é diferente ou vê para além de mim, aí é melhor taxá-lo de “louco”. Se o outro é “louco”, eu sou “normal”. Um gênio em uma época para além de sua época. Hoje sabemos que Van Gogh era para nossos tempos, aliás, para um tempo que há de vir. O tempo de Van Gogh ainda não chegou. Mas pelo menos sabemos que o Museu Van Gogh da cidade de Amsterdã na Holanda, é um dos mais visitados no mundo. Sua obra é motivo de muitos estudos na atualidade.

O filme consegue mostrar que Van Gogh não era o “louco” que todos diziam. Apenas estava na sua órbita e traduzindo seu olhar de mundo e da vida numa forma plástica que nos coloca sempre na posição de inquietação. Van Gogh era intenso, ativo e altamente sensorial, bem diferente dos simples mortais que vivem a cada dia a rotina da vida sem olhares diferenciados, sem perspectivas futuras, sem brilhos na alma. Quando alguém nos chama a sairmos de nossas mesmices, aí sim atacamos dizendo que estes provocadores são “loucos”. Como já dizia o poeta: “...e louco é quem me diz, e não é feliz...”

No dia seguinte em que assisti ao filme “No portal da Eternidade”, atendi um paciente que estava entrando nas artimanhas de sua família com internamentos em SPA psiquiátricos, destes para a elite esconder seus diferentes. Aqueles diferentes que são “bode expiatório” da insanidade que muito vemos sendo cultivada em ambientes com foco no dinheiro, na produção e no status, com baixíssimo foco nas interações afetivas. Sempre digo às famílias, evitem o primeiro internamento, pois se abrir as porta para o primeiro, muitos outros virão. Este paciente falava exatamente disto, quando entrou para um destes “manicômios” modernos teve contato com vários jovens que já tinham passado por várias clínicas. Ele mesmo recebia ameaças depois do internamento, que se não tomasse jeito iria ser internado novamente.

Em tempos diferentes, mas com as mesmas semelhanças, a fase final da vida de Van Gogh se passa com o mesmo cenário, da incapacidade das famílias e sociedade aceitarem a diferença do outro, principalmente quando esta diferença é tão gritante em relação ao senso comum.

Quando penso que um dia poderei ter comportamentos diferenciados do senso comum, digo a minha esposa para me amarrar ao pé da cama e não sair do meu lado, até a diferença passar, ou se preferirem um termo técnico, até o “surto” passar.

Não estou querendo negar a doença mental, nem os transtornos emocionais, os quais passo diariamente colaborando com muitos pacientes na busca de um caminho ao auto conhecimento e capacidade de integração com a realidade. Van Gogh quando era acolhido pelo irmão e por pessoas que o entendiam, como relata o filme, com a presença constante do amigo e grande artista Paul Gauguin interpretado pelo ator Oscar Issac, também pelo médico amigo Dr. Paul Gachet que no filme é interpretado pelo ator Mathieu Amalric, e cuja imagem ficou imortalizado por Van Gogh. Nesta interatividade e respeito das diferenças, Van Gogh encontrava sinais para continuar buscando a luz, que ele atribuía á força do Espírito Santo na natureza, como se fosse um sopro.

A “loucura”, sempre entre aspas, pois não existe loucura, é estereótipo estigmatizante, como bem nos apontou Gofman em seu livro Estígma (1988). Hoje no Brasil estamos assistindo o Ministério da Saúde querendo liberar o eletro choque para tratamentos de paciente que os quadros mentais não conseguem evoluir para uma melhora. Também apontam para o internamento de crianças com processos avançados de transtornos emocionais em clínicas de adultos. Apontam-nos retrocessos, que nos remetem a posturas antigas de intervenções e internamentos pela qual o próprio Van Gogh passou. Parece que estamos querendo enquadrar aqueles que não se enquadram. Geralmente estas propostas surgem de grupos com baixa capacidade de produção acadêmica e com certa memória curta da história. Intervenções agressivas e de clausura são mais fáceis, exige menos conhecimento e menos habilidade e criatividade de ação.

Mas, se em sua família ou no seu círculo de amizade você tem contato com pessoas que aparentemente se comunicam de forma diferente que a sua ou a do senso comum, o primeiro passo é desprover-se dos preconceitos estigmatizantes, adentre no mundo da pessoa e procure entendê-la. Lógico que se esta pessoa estiver precisando de uma ajuda psiquiátrica e psicológica, apoie e incentive. De alguma forma o irmão de Van Gogh, Theo, que no filme é interpretado pelo ator Rupert Friend, segundo a história agiu desta maneira, inclusive preservando o patrimônio do irmão e o encaminhando para tratamentos, acolhendo-o afetivamente. A vida curta de Van Gogh foi resultado de uma sociedade preconceituosa, que inveja a genialidade do outro, e que exclui o diferente, aqueles que nos fazem pensar para além de nossos olhares. 

O caminho é acolher, encontrar-se com o outro da forma com que ele se apresenta e ver as suas potencialidades. Pois “o que me difere do ‘louco’, é que ele grita o meu sufoco”, já diz o ditado popular. E para lembrar o Psicanalista Francês Lacan, que o que move a humanidade é a “loucura”. Depois de Van Gogh, as artes plásticas, sem dúvida, já não são mais a mesma coisa, sopra nelas os ventos turbulentos e expressivos do pincel de Van Gogh.
 


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