Sexualidade da criança, menino ou meninaPublicado em 31/10/2019 Falar de sexualidade da criança sempre é necessário. Quando pensamos que algumas dúvidas ficaram no passado e que as pessoas adultas já sabem entender os mecanismos de desenvolvimento da sexualidade infantil, aparecem pais e professores fazendo as mesmas perguntas ou se assustando com as mesmas cenas, por exemplo: Cena 1: Na escola, no jardim da infância, as crianças da turma de 4 aninhos estão em um dos banheiros e, no centro de uma roda de crianças agachadas no chão, há um menino simulando a relação sexual com uma menina. A professora chega ao ato e solta um grito, assustando todas as crianças. O fato chega à direção da escola, que tem a iniciativa de agendar uma palestra sobre sexualidade das crianças com objetivo de alertarem os pais. Os protagonistas da cena são chamados na sala da diretora, e ela dá uma aula sobre o que é certo e o que é errado em relação à sexualidade. O convidado para a palestra sou eu e, depois de ter realizado a minha fala fui chamado pela diretora que me relatou estar muito frustrada com a minha abordagem, pois achou que eu fui muito aberto,já que falei que a cena do banheiro era normal. Era mais uma destas diretoras que pedem para darmos palestra na escola “delas”, e que só faltam gravar o que devemos ou não dizer. Cena 2: Na casa de uma senhora, a filha de cinco anos gosta muito de brincar com os meninos com brinquedos de meninos, e as mães dos meninos começaram a levantar questionamentos com esta mãe se a filha não estava desenvolvendo uma tendência homossexual. A mãe, apavorada, me liga para saber de minha opinião. Cena 3: Esta aconteceu em minha casa, quando meus filhos ainda eram crianças. Atuávamos eu e minha esposa em projetos de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis em regiões turísticas no norte do Espírito Santo, em parceria com a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). Recebíamos agentes desta instituição, sendo alguns deles transexuais e outros homossexuais. Oferecemos, então, em nossa casa, uma recepção envolvendo amigos com a finalidade de acolher a moçada da ABIA, sendo que eles ficavam hospedados em casa. Um casal chegou, em particular, falando bem baixinho, e disse: vocês tem a coragem de receber estes “bichas” aqui na sua casa? Cuidado que seus filhos podem também ficar “bichas”. Como se a orientação sexual e de gênero fosse um vírus contagiante. Nestas três cenas, observamos que a preocupação, a qual não quer sair do mesmo lugar, está em torno do medo de as crianças desenvolverem um estímulo sexual fora da época, e de se tornarem homossexuais “no futuro”. Estas são preocupações muito restritas a uma forma padronizada de ver a sexualidade em torno do desenvolvimento genital, forma esta carregada com o velho clichê dicotômico, pelo qual masculino é azul e vira homem e feminino é rosa e vira mulher. Pena que as campanhas de prevenção aos cânceres relacionados ao sistema reprodutor masculino e feminino (Próstata e mama e seus adjacentes) estejam associados com este estigma, nas mulheres e nos homens (rosa e azul). Sexualidade vai além dos genitais Na etapa de vida que intitulamos criança, que vai da fecundação até os doze anos, a sexualidade não pode ser vista pura e simplesmente como uma questão fisiológica ou de fatores específicos do masculino e do feminino. A sexualidade está mais relacionada com a estruturação do vínculo afetivo do que com demandas genitais. A criança, no seu desenvolvimento afetivo, necessariamente passa por contatos corpóreos, pois no ser humano o afeto é prioritariamente sentido na transmissão de sentimentos pelo contato. Mas, para cada etapa a criança vai estipular e nomear objetos e até partes do corpo para interagir na sua construção afetiva e ir descobrindo o mundo, conhecendo ou explorando todas as forças que estão em torno de seu desenvolvimento. Neste sentido, vejo que a sexualidade da criança está relacionada para além das demandas afetivas de vínculo, está também na busca de conhecimento, pois a criança quer conhecer tudo o que está ao seu redor e sempre parte do seu próprio corpo, já que é o corpo que baliza sua existência na exploração de tudo o que está ao seu redor. Por estes dois fatores, vínculo afetivo e busca de conhecimento, que a sexualidade ultrapassa as demandas fisiológicas genitais. Porém, temos que entender esta dinâmica por etapas de vida, sem querer colocar todas as crianças num mesmo patamar, respeitando cada etapa ou fase do desenvolvimento infantil. O desenvolvimento saudável de uma criança no campo da sexualidade pode ser medido pela busca de conhecimentos que ela possui. Quanto mais observo que a criança está interagida com o seu meio, explorando de diferentes maneiras, mais sei que sua sexualidade está bem desenvolvida. Porém, crianças que conseguem ter uma interação de vínculo afetivo e de busca de conhecimentos (exploratórios) tendem a ser vistas como “traquinas”, ou até são medicadas como se fossem hiperativas (olha que o Brasil é campeão em mutilar futuros gênios, medicalizando-os com ritalina). Se os adultos que, direta ou indiretamente, cuidam de crianças não entenderem esta realidade, e ficarem continuamente reproduzindo os mesmos modelos pelos quais passaram suas próprias infâncias, com seus traumas e repressões, não haverá processo educacional que dê conta de transformar a percepção deles sobre o olhar realista acerca do desenvolvimento da sexualidade da criança. Cairão sempre neste quadradinho de que “isto é de menino” e “aquilo é de menina”; “isto é certo aquilo é errado”; “meninos são fortes e determinados e meninas são frágeis”. Se os pais não ficarem atentos, acabam acreditando que as crianças iniciam a vida sexual ativa desde os primeiros anos de vida e que se não dividirem as brincadeiras e separarem os sexos, eles podem se tornar homossexuais, e com isto forjam a ideia de que a homossexualidade é uma patologia. Os professores também precisam ter um olhar adequado sobre a sexualidade infantil, para não criarem estereótipos e condutas moralistas em um ambiente educacional. Etapas do desenvolvimento infantil relacionadas a sexualidade Para situar algumas demandas, vou brevemente fazer uma trajetória das diferentes etapas do desenvolvimento infantil e da sua sexualidade: I. Vida intra uterina – O desenvolvimento da sexualidade nesta etapa está relacionado ao tato da pele, da relação do bebê na vida intra uterina com o zelo emocional dos que o estão gerando, seus pais ou comunidade ao entorno. Pois não são só os progenitores que estabelecem este vínculo, mas todos que ao entorno acolhem uma gravidez. Um ícone deste processo corporal é o trabalho de parto, no qual a fisiologia da mulher inicia um processo de trabalho de parto que é parecido com uma boa massagem de cima para baixo do útero estimulando a criança a nascer. Assim, trabalho de parto é cena de sexualidade, pois é estímulo afetivo; II. O primeiro ano de vida – é a fase mais estruturante do estabelecimento de vínculos, pois como humanos, a criança só consegue amadurecer seus órgãos vitais pelo encontro de braços afetivos que a acolhem. Nesta etapa, é forte o vínculo de referência da boca pois, nela, o mundo passa pela boca, assim, pela boca tem forte vínculos e explorações de mundo, pois pela boca é que sobrevive no ato de amamentar; III. Fase anal - já no decorrer de seu desenvolvimento, a criança começa a se relacionar com conteúdos que ela mesmo produz, aqui falamos do vínculo com sua produção tanto anal (cocô) como pelo regurgito. Haja fraudas e panos para limpar a intensa produção. Aqui, a sexualidade está vinculada a esta auto-percepção de produção, e com isto vai também explorar o mundo pelas sujeiras, terras, lamas. IV. Desenvolvimento genital - Se aproximando dos 3 a 4 anos, o órgão que vai despertar o interesse da criança, de modo geral, é o genital. E por exploração começa a perceber as diferenças genitais com outras crianças do sexo oposto, a necessidade de tocar nos genitais e de entender como funciona os genitais alheios. Aqui temos o início da percepção das crianças sobre a reprodução de vínculo amoroso dos seus pais ou de casais que habitam na mesma casa. Este parâmetro de percepção e de identificações sexuais se dá pela comparação entre os iguais e diferentes pelos genitais, nascendo aqui a incrível construção da sexualidade no estabelecimento de identificações, o que Freud chamou de complexo de Édipo. Aqui temos a fase que os pais e as escolas ficam muitas vezes apavorados, pois as crianças começam os jogos sexuais, entendidos como meio de espelhar a realidade que os cerca e de explorar as diferenças, e para isto vão se utilizar de cenas sexuais e atos amorosos que presenciam ao seu redor. Esta exploração acontece principalmente pela necessidade das crianças em provocarem o encontro, não são os genitais em si que estão em jogo, mas a exploração do encontro com o outro. E aqui não tem em si a separação clássica de menino com menina, todos estão juntos e misturados. Aqui não existe a conotação erógena e/ou maliciosa sexual que habita o mundo adulto. Olhar para estes jogos de exploração como se fossem parecidos com o mundo adulto provoca repressão e atos de correção absurdos e totalmente desfocados da real necessidade da criança na fase em que ela está. V. Latência – dos 6 aos 11 anos , quando a criança passa por este turbilhão de etapas em que possui poucos recursos motores e até cognitivos em relação aos adultos, e por isso é intenso seu vínculo com seu próprio corpo e todas as reações que o corpo produz, a criança começa a se encontrar com o mundo do conhecimento pelo seu próprio potencial cognitivo. Aqui, a sexualidade que chegou livre leve e solta, potencializou vínculos afetivos e explorou conhecimentos, agora começa adentrar nas letras e nos números. Parece que até o corpo dá um tempo para fazer vigorar o processo de aprendizado sistematizado, da criatividade livre e do encantamento pelo explorar o mundo brincando, o mundo é um eterno brincar. Aqui nasce a pulsão para os estudos ou o que Freud chamou de processos sublimatórios, que nos ajudam a transformar forças físicas e psíquicas em algo sublime, elaborado. Rever conceitos e abrir a mente para os novos parâmetros Passando muito brevemente por estas fases, queira ou não ainda bem ligadas à estruturação traçada pela teoria de Freud, pois ainda não vimos algo tão certeiro enquanto aos processos de desenvolvimento da sexualidade infantil, parece que tudo é tão simples. Seria se não fôssemos nós adultos quem tivéssemos que nos relacionar com as crianças neste caldeirão de energias. Torna-se mais complexo, pois nós, que somos os responsáveis diretos pela acolhida das crianças no mundo e no seio da sociedade, também passamos por traumas, repressões e castrações da nossa própria infância. Tendo contato com as crianças, temos a tendência de regredirmos emocionalmente à nossa própria infância e com isto confundimos o que é nosso de adulto mal elaborado e o que é da criança na sua mais natural realidade. Assim, como nossos pais, reproduzimos ciclos de repressões e reeditamos o passado no presente sem evoluirmos nos processos educativos. O problema é que ficamos num modelo passado para uma realidade que avança tecnologicamente de forma assustadora. Abre-se uma lacuna entre as gerações, daquilo que fomos como adultos e não queremos abrir mão para o vasto conhecimento que as crianças atualmente têm contato. É melhor rever conceitos, e se posicionar com a mente mais aberta para os novos parâmetros educacionais da atualidade, sendo um deles o da sexualidade da criança. Se não, começaremos ver aumentar o número de adultos que ainda acreditam que o maior pecado humano foi o de Eva ter comido a maçã. E olha que estamos vendo muita gente ainda acreditando que a terra é plana. Imaginem então como é difícil fazer mudanças de olhares sobre a sexualidade humana. |
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