Diante do cenário
mundial em torno da pandemia da Covid 19, ouvimos frequentemente falas do tipo:
“Este ano de 2020 não existiu, vamos recuperar tudo em 2021...”; “Em 2021 vai
ser diferente, pois este ano foi a morte...”; etc. E é por estas e milhares de
outras falas do cotidiano das pessoas e também do meu, por onde quer que
estejamos, que pensei em falar um pouquinho sobre o amanhã.
Cuidado com “amanhã eu faço!”
Se uma
pessoa diz: “amanhã vou começar a correr...”; “amanhã vou começar minha
dieta...”; “amanhã vou parar de fumar...”; “amanhã vou usar menos meu
celular...”; é sinal de que ela nunca vai começar. Pois o amanhã não existe, e
quando chegar o amanhã de hoje, já teremos outro amanhã. É uma lógica tão sutil
para a construção do pensamento, que temos de fato a tendência de negarmos o
hoje para nos projetarmos no amanhã. É como um círculo vicioso de linguagem e
de ação.
Esta
descoberta de que o amanhã não existe foi a grande sacada dos criadores do AA
(Alcoólicos Anônimos), dois médicos dos Estados Unidos, muito amigos e
alcoólatras, e um dia, de tanto beberem wisky um olhou para a cara do outro e
disse: “ - Nossa, você está feio, super inchado”. E o a resposta foi: “- Mas
você está mais feio do que eu...”. Daí pra frente criaram o AA, onde elaboraram
dez passos para a sobriedade e o primeiro deles: “... por hoje, evite o
primeiro gole...”. E olha que o AA teve início oficial em 1938 e o nome foi
criado pelo jornalista Joe W da revista New Yorker, e espalhou pelo mundo inteiro.
Ela é a instituição que possui os melhores resultados para a manutenção da
abstinência alcoólica e sobriedade sobre a doença incurável do alcoolismo.
Veja tão simples e tão
complexo, apenas por hoje não beber, porém, somos uma espécie que vive se projetando
para o amanhã e este fator de construção cultural nos conduz inconscientemente
a sempre estarmos desejando o amanhã.
Transtornos mentais
Neste sentido, vamos
entender parte do por que o Transtorno da Ansiedade e Transtorno da Depressão é
o carro-chefe dos sintomas que mais emergem em períodos de crises sociais, por
guerras, catástrofes e pandemias. Queremos fugir do hoje que nos atormenta, e
incorporamos a depressão e também ficamos na lembrança do que foi o ontem, e
caímos no saudosismo agonizante e consequentemente na depressão.
Com o pé amarrado no
ontem, e a cabeça flutuante no amanhã, vivemos sem estar conectados com o hoje.
É como dirigir um veículo com a cabeça virada para trás ou apenas olhando para
frente sem as mãos no volante, com certeza não vamos chegar a lugar
algum. Para dirigir bem um automóvel, é necessário estar olhando para trás
pelos espelhos retrovisores, sem, no entanto deixar de olhar para frente,
desejosos de chegar onde projetamos a viagem, mas com as mãos no volante. O
volante é o nosso hoje, este aqui e agora.
Então, é para viver preso no presente?
Mas
você pode estar pensando: “Como assim, o amanhã não existe? Vamos viver presos
no presente? E nossos projetos, nossos sonhos, não diz respeito ao amanhã? Aí é
que está a chave para a realizações de projetos e sonhos (do amanhã). Do amanhã
pois entra na esfera do devir, do desejo e com isto na orbita da fantasia, de
subjetividade humana. E é por causa desta subjetividade que nos diferenciamos
dos animais que são codificados geneticamente para viverem como vivem.
Projetos e sonhos são perspectivas
que podem ou não dar certo. Imagine que você pense “...amanhã vou viajar!”, e
logo mais à noite você tem uma parada cardíaca e morre. Nossa, que crueldade.
Mas o seu amanhã não vai chegar, pelo menos para você degustar da viagem
programada. Será triste para quem ficar para te velar. Tudo bem que se você
acredita em “paraíso” celestial e ou acredita em reencarnação, pode ser que seu
amanhã poderá ser no inferno ou no céu, ou em alma procurando algum lugar para
habitar.
Enfim,
esta conversa poderia nunca ter fim. O amanhã não existe na ação, apenas no
desejo. Lógico que somos movidos ao desejo que é o que nos coloca em franco
processo de busca, de crescimento de conquistas. De fato, quem não deseja o
amanhã, ou está doente ou está morto. O problema é que este desejo pode ser
atingido se estivermos fazendo ações no hoje, no aqui e no agora, para que o
sonho se realize. Do contrário vamos ficar na orbita do desejo, da
subjetividade e nada vai acontecer.
Imagine um jovem no
terceiro ano do ensino médio desejar cursar uma Universidade Pública, mas no
dia a dia não está estudando. Se o sujeito for um gênio, pode até ser que
consiga, mas...! Poucos são gênios, ai é melhor estudar dia após dia, para que
o desejo da Universidade possa ter a chance de acontecer.
Agir e realizar no coletivo
Lembrando
que sonhos (projetos) na vida adulta se estiverem numa esfera muito individual,
fechados em si mesmos, tendem a ficar na fantasia de alimentação narcísica,
voltado para o próprio umbigo. Por isso é sempre bom lembrar da célebre frase
do dramaturgo Bertold Brecht: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que
se sonha só. Sonho que se sonha junto, é realidade”. Esta analogia de Brecht é
a clareza de que nós Sapiens somos coletivos. Por isto que o consumismo nos
individualiza e nos transforma em fantasiosos sonhadores sem potencialidades de
ação prática, e adoecidos emocionalmente.