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Dia internacional da mulher | Cenas para pensar

Publicado em 08/03/2021


Cena do luto 

Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, vejo, pelo facebook, a notícia que a mãe de meu grande amigo/irmão Jairo da cidade de Contagem-MG, Dona Conceição de 80 anos, faleceu por causa do Covid-19. A cena é lamentável, a família não podendo velar o corpo de dona Conceição, e o caixão saindo do hospital lacrado direto para o cemitério. Dona Conceição era tida pela família e bairro onde morava na cidade de Contagem-MG como “Matriarca”. Mulher ativa na comunidade e muito dedicada na formação dos filhos, uma guerreira, e que aqui transcrevo a visão que o meu amigo Jairo descreveu para mim sobre sua mãe:


“Uma mulher suave, perseverante, esperançosa, capaz de lutar com unhas e dentes pela garantia da vida de suas crias. Destas mulheres que vale a pena lutar por Elas e com Elas. A típica Mulher que viveu a sua infância e início da juventude na roça e na década de 60 vem para a cidade grande assumir os cuidados de marido e filhos e alimentá-los de sonhos e esperanças de prosperidade, porém, sem perder a ternura diante de um ou vários monstros apresentados nesta terra 'prometida'. Amo esta mulher, sou muito grato a esta mulher, peço a Deus por esta mulher. CONCEIÇÃO ROMUALDA, PRESENTE!” .

Fui acolhido na casa de dona Conceição quando ainda cursava Psicologia pela Unesp/Assis. Na oportunidade, passei três meses, durante as férias de final de ano, fazendo estágio na Comunidade terapêutica da cidade de Pedro Leopoldo/MG para dependentes químicos, em 1987. Dona Conceição me acolheu com muita alegria em sua casa aos finais de semana. “Êta” mulher “arretada”, de força e alegria, sempre a servir. Posso dizer que esta foi a primeira morte que presenciei pelo Covid-19, de alguém com a qual tenho profundo vínculo emocional.


Diante de um cenário onde o Presidente da República Bolsonaro satiriza as famílias dos que morreram pela Covid-19, atribuindo o choro como um “mimimi”, essa cena fica ainda mais triste. Isto é motivo suficiente para o Supremo Federal interditá-lo como presidente, pois revela um comportamento dissociativo, uma insanidade mental que inclusive levou a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro a escrever um manifesto de repúdio no dia 02/03/2021, que nominam “banalização do mal”.


Ainda em cenas de luto, o Dia Internacional da Mulher, a meu ver, precisa sempre iniciar com o “Silêncio Orante” pelas 130 mulheres que foram assassinadas dentro de uma fábrica têxtil, pois em 8 de março de 1911 na cidade de Nova York, enquanto as operárias faziam protesto dentro da fábrica por melhoria das condições de trabalho, sendo que a média diária de trabalho era de aproximadamente 14 horas por dia ininterruptamente, homens ateavam fogo por fora da fábrica, com as portas trancadas. Elas morreram asfixiadas.


Luto pelos milhares de mulheres que continuam sendo vítimas do feminicídio que é generalizado em todo o planeta. No Brasil de 2020 foram aproximadamente 648 mulheres assassinadas, representando um aumento de quase 2% em relação a 2019.


Celebrar é necessário, mas antes mesmo é necessário memorizar a história para ter significado de luta, para avançar na construção de uma sociedade com equidade entre mulheres e homens em todos os âmbitos e em todos os lugares. Temo, e fico com um “pé atrás”, quando vejo lojistas, mídia e jornalismo, trazendo uma maquiagem falseada de promoções, prêmios e paetês em torno deste dia. Uma isca do capitalismo de consumo em uma questão sócio crítica de luta.


Cena Mulheres Negras

Aqui, remeto-me às reflexões de pensadoras negras no atual contexto da luta por uma sociedade antirracista, como as reflexões de Djamila Ribeiro, Ângela Davis, beel hooks e Lélia Gonzales, dentre muitas outras. Estava esperando no semáforo de uma avenida da cidade de Vitória/ES onde resido, indo para minha clínica bem cedo, e observei um grande número de mulheres descendo de um coletivo e atravessando a faixa de pedestre. Logo entendi que se tratava de empregadas domésticas provenientes de bairros periféricos da cidade para trabalharem nas residências de suas mulheres patroas, pois logo ao lado havia um condomínio de muitos prédios de classe A, com cinco prédios de aproximadamente 20 andares, cujos apartamentos são avaliados em torno de um milhão e duzentos mil a um milhão e quinhentos mil. Consegui contar quantas mulheres eram negras e quantas eram brancas. Fiz uma amostragem indicada pelo Pesquisador e escritor Silvio Almeida, que em seu livro “Racismo estrutural” nos ajuda a perceber o racismo no Brasil. Mesmo tendo sido vendida, ao longo de nossa história, a ideia de que no Brasil não há racismo, Almeida indica fazermos esta breve contagem por percepção fenotípica. Nesta minha contagem no semáforo, observei entre 11 mulheres, 9 negras e 2 brancas, 81%. Lógico, que é uma percepção hipotética, contudo, supus serem trabalhadoras domésticas, Já que não seriam executivas descendo de um coletivo as 06h30min da manhã, chegando antes das 7h da manhã, para liberarem suas patroas para irem também o trabalho. As domésticas, com máscaras, saíram provavelmente entre 5h a 6h de suas casas, deixando seus filhos sabe-se lá com quem, num coletivo abarrotado de trabalhadores. As patroas, na sua quase totalidade, acredito, de carro e sem máscaras.


Nesta cena, pensei sobre o quanto que ser Mulher Negra neste país pesa absurdamente mais do que o ser Mulher em si. As pensadoras e pesquisadoras negras emergentes na atualidade, principalmente as que militam na causa do feminismo negro, entendem que, na pirâmide de exclusão social, a mulher negra está no último escalão, sendo primeiro o homem branco, depois a mulher branca, depois o homem negro e depois a mulher negra. Com certeza, se formos acompanhar os ambientes de trabalhos das patroas das trabalhadoras domésticas, veremos que a proporção de mulheres brancas em relação às negras se inverte, quando comparada ao ambiente de trabalho doméstico. Veja você mesmo nos bancos, nas universidades, e inclusive nas escolas particulares, veremos um índice proporcional de quase 90% de mulheres brancas contra 10% de mulheres negras. É sempre bom lembrar que, no Brasil, 60% da população é afrodescendente.


Cena Machismo Pessoal


Tenho dirigido muito, tanto na cidade como nas estradas, por conta do trabalho. Recentemente, percebi o meu machismo (é evidente que ele não aparece só nesta situação), coisa que tenho tentado fazer após ler o próprio Silvio Almeida dentro das demandas de práticas enraizadas na cultura que ele nomina de Estrutural, e associado a uma série de artigos e livros que tenho pautado meus estudos para a Clínica Psicológica em torno do machismo. Parto da indicação de não ter medo de se ver manifestando comportamentos machistas, pois a tendência dos homens é de negar o machismo. Eu me pego todos os dias em cenas machistas, e isso tem ajudado a me posicionar na construção do antimachismo e acredito que tenho melhorado. Hoje mesmo minha esposa disse que já melhorei muito nas minhas posturas machistas, e olha que ela é militante das causas feministas.


Mas vamos à cena. Estava na estrada em direção à cidade de Linhares/ES onde tenho uma clínica psicológica, e um veículo estava andando na velocidade, a meu ver lenta, e eu fiquei preso atrás deste veículo por um longo trecho que não permitia ultrapassagem, o que estava me deixando ansioso e irritado, pois tinha horário para começar a atender. Ao conseguir ultrapassar este veículo, dou uma buzinada reclamando, e, no veículo, quem dirigia era uma senhora, que desceu o vidro e deu um sorriso. Mas logo pensei em voz alta “Só podia ser mulher”. Este é um machismo estrutural, a noção de que os homens dirigem melhor que as mulheres e elas são “barbeiras” no volante. Mas depois pensei sobre este meu ato. É um machismo estrutural, pois me lembro de uma cena na relação com meu pai que, dentre centenas de cenas machistas dele que presenciei, esta é uma clássica: estava varrendo a cozinha de casa a pedido de minha mãe que sempre colocava os filhos para fazer atividades de cuidado da casa. Minha mãe preparando a comida do almoço, e sempre meu pai chegava no horário certo para almoçar. Mas neste dia que estava varrendo a cozinha, meu pai resolveu chegar mais cedo e ai foi um inferno ao me ver varrendo a cozinha. Ele logo foi atacando a minha mãe dizendo: “Você vai deixar este menino ‘boiola’ (homossexual)”. Olhou para mim e disse: “sai daqui menino, vai brincar”. Eu achei ótimo, pois depois disto, nunca mais fiz nada na casa de minha mãe. Mas herdei um machismo estrutural que hoje custa muito caro para mim.


Esta parece uma cena ridícula de tão simples que é, mas o machismo é uma força comportamental coletiva que se fortalece pelas inúmeras e centenas e milhares de cenas mínimas como esta, que vai formando um conceito no modo de viver dos homens na sociedade e vai se avolumando até chegar no feminicídio coletivo.


Nesta posição de reconhecer o machismo estrutural, tenho indicado ações para homens tanto no ambiente familiar como no trabalho, no sentido de buscarem mecanismos de auto percepção do machismo pessoal e também de fazer ações de parceria com as mulheres. É muito comum, nós homens, que vivemos em um casamento dizermos com frequência que ajudamos nossas companheiras nas tarefas de casa, o que já é uma expressão machista. Ajudamos ou fazemos juntos?


Recentemente sentei com dois filhos homens, que estão em casa ainda, para distribuirmos as tarefas de casa, dividindo os ambientes em que cada um de nós estaria responsável para cuidar. Como escolhemos não ter alguém para o serviço doméstico em casa, estamos nos organizando em fazermos todos a sua parte, e muitas coisas fazermos juntos.


Cena Celebrar


Diante de um cenário nada animador, em que o Brasil está forjando a emergência de um líder político feminicida, nome que inventei de “Bolsominicida”, com um perfil misógino (homens que destroem mulheres), poderíamos dizer que as mulheres tem muito pouco a celebrar.


Mas a minha parceira amorosa, Ina, nesta sexta-feira passada, me manda uma mensagem dizendo: “Estou querendo de presente para o dia das mulheres, um kit e maquiagem”. Ela, uma feminista, deseja no dia das mulheres um presente para a sua autoimagem. Pensei, que mesmo diante das adversidades, e das muitas conquistas que ainda estão por vir para as mulheres galgarem a equidade de direitos em relação aos homens, vale a pena celebrar sim. Celebrar as muitas conquista já realizadas.


Lembrei-me da célebre frase de Che Guevara: “Há que se manter na luta sem perder a ternura”. Por isto, vamos celebrar sim, com alegria, mais um Dia Internacional da Mulher, sem perder a utopia, o sonho e a esperança da conquista da tão sonhada equidade de direitos.


Feliz dia Internacional da Mulher !


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