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Minha desastrosa experiência com o voto impresso

Publicado em 06/08/2021


Estamos vivendo tempos de retrocesso no Brasil. Uma nítida tendência de retorno à idade média, onde o fundamentalismo religioso condenou muita gente à morte, principalmente aqueles que manuseavam a ciência. Em nome de Jesus Cristo, condenavam pessoas como bruxas e bruxos e as queimavam nas fogueiras ou decepavam suas cabeças.


Esta articulada conversa de defesa sobre o voto impresso, que o Presidente Bolsonaro jogou lenha na fogueira para tentar salvar seu governo que saiu tão rapidamente dos trilhos (e a população brasileira, ainda bem que já começou a perceber), ainda cativa os aliados deste projeto de extrema direita do atual presidente e convence e/ou faz aumentar o caldo daqueles que investem na desestabilidade democrática do país em vista a terem benefícios.


Sabemos que o golpe militar de 1964, ano em que nasci, não foi somente uma ação para moralizar a nação supostamente mergulhada em corrupção, mas sim, foi a elite da época, que estava representada pela oligarquia brasileira, quem arquitetou o Golpe de 64 e depois nadou em plenitude nos bens que esta terra sempre ofereceu aos mais endinheirados. E com isso, o regime militar no Brasil, que foi de 1964 a 1985, enriqueceu ainda mais os que já eram enriquecidos e ainda fez emergir uma nova classe de políticos que eles, os militares, nomearam para governar os estados. Esta classe está contida até hoje no grupo de parlamentares que leva o nome de “Centrão”, do qual Jair Bolsonaro sempre fez parte nos seus quase trinta anos como Deputado Federal. Com os militares, a corrupção andou solta neste período.


Com a abertura política de 1985, ano em que ingressei no curso de Psicologia na UNESP campus de Assis-SP, pudemos voltar a votar, e ainda na época o voto era impresso. Gente, quem estava vivo naquela época, votou e participou de mesas de apuração dos votos, sabe muito bem o quanto a contagem manual humana dos votos dava margem sem precedentes para aproveitamento de votos em branco e/ou não contagem de votos. E como demorava os resultados nas urnas. Também, de alguma forma fomos vendo o emergir de lideranças e partidos que saiam do eixo ARENA dos militares e MDB da oposição pacífica aos militares (ou dos intelectuais forjados pela elite). Neste cenário, surgiram governantes que de alguma forma deram visão ao olhar social, a projetos para a inclusão e para o processo de amadurecimento da democracia, que após 21 anos de ditadura militar estava começando a dar seus primeiros passos.


Experiência pessoal com o voto impresso

Depois, quando já formado em Psicologia e o Brasil andando a trancos e barrancos, porém melhor que no período militar, pois os ventos da liberdade democrática sopravam, acabei aceitando em conjunto com minha esposa Maria Celina de desenvolver um projeto social na área da Saúde Integral da Mulher na cidade de Pinheiros-ES, que fica no extremo norte do Espírito Santo. Lá, desenvolvemos muitas ações no campo social diretamente vinculado à Diocese de São Mateus-ES, que na época Dom Aldo Gerna era o Bispo. Tivemos como mentor deste projeto o Padre Italiano Domenico Salvador. Na época, as Comunidades Eclesiais de Base estavam com muita força e fomentavam esperanças ao povo sofrido de nosso interior brasileiro tão cheio de injustiças sociais. A Pastoral da Juventude estava muito forte e nas eleições municipais de 1996 vários jovens da região se lançaram candidatos a vereador e prefeito. Em Pinheiros-ES, pudemos colaborar com a campanha eleitoral para vereadora da jovem, mulher, pobre e negra, Zenilda dos Santos, a ZENI. E é daqui que trago a cena do voto impresso.


Estava acompanhando a apuração dos votos de ZENI e, para tal, fiz uma planilha para manusear, pois ainda não tínhamos as facilidades digitais de hoje. Em todas as urnas Zenilda tinha votos, numa média de 12 a 15 votos. Depois de um tempo, que me lembro 12 urnas corridas na sequência, zerou os votos de Zeni no painel manual oficial de apuração que eram postados em papéis. Achei estranha esta quebra de votos e solicitei ao Juiz eleitoral que estava acompanhando a apuração a recontagem dos votos das urnas que Zeni havia zerado. O Juiz acatou, pois também considerou estranho. Após a recontagem, a mesma média de votos apareceu e a ZENI acabou sendo eleita. Se não fosse esta recontagem, seria outro candidato a se eleger, um que tinha o apoio de fazendeiros da região.


Assim que as cédulas apareciam, comecei a observar que alguns membros da mesa apuradora ficavam com canetas nas mãos e ao se depararem com votos em brancos, riscavam algo no voto. Imaginem isso em uma cidade pequena do interior deste país e transportem este cenário em nível de Brasil? Quantos erros de contagem de votos por ação planejada. Após o episódio, comecei a receber recados que ao término das apurações a “coisa ia pegar para meu lado”. Nesta época, o estado do Espírito Santo tinha a fama no Brasil de ter profissionais pistoleiros para matar, que a oligarquia agrária contratava. Havia até uma instituição paramilitar de aluguel de matadores. Fiquei sim com medo, e antes de acabar a apuração, eu e minha esposa saímos para passar a noite em uma cidade vizinha, para os ânimos se acalmarem. Depois disso, no ano seguinte, foi publicada uma lista de dez pessoas da cidade que estavam marcadas para morrer, e meu nome saiu em primeiro lugar. Na época, achava tudo isso uma aventura. Mas, de fato, estávamos correndo muito risco de vida. Zenilda fez um belo mandato de vereadora, mas foi tão atacada moralmente por quatro anos, pela oligarquia local, que faziam até panfletos anônimos a chamando de “cadela negra” (Feminicídio e racismo). Ela acabou saindo de Pinheiros-ES e mudou-se para Vitória-ES, onde reside até hoje e atua como Professora da rede pública.


E vejam, em 1999 começou o processo das urnas eletrônicas, que foi algo espetacular, em que esta patente brasileira não foi encampada pelo mundo afora por ser brasileira. Quem é este país para criar uma coisa tão avançada desta? O processo foi se aprimorando e nestes longos anos de urna eletrônica não se tem prova de falcatruas. Se há questionamentos da fragilidade das urnas, com certeza também há da contagem manual humana, algo que a própria história já provou que é mais violável do que as urnas eletrônicas.


Fique atento!

Apostar no voto impresso, com nossa estruturada experiência do voto eletrônico, é de fato uma posição de não convivência com a democracia, é perfil de grupos que querem impor domínio. Sabemos que questionar e ter visão diferente da maioria é um direito e uma posição, mas dentro de uma perspectiva dos olhares e opiniões no estado democrático de aceitar o posicionamento que tem o apoio da maioria, é saber se colocar no processo democrático. Do contrário, é puro exercício dos interesses pessoais.


No caso de Jair Bolsonaro está claro: ele criou um veneno para desestabilizar e ameaçar a democracia. Um governo que coloca milhares de militares em primeiro, segundo e terceiro escalão, espalhados em todas as instâncias de poder do governo federal, sabendo que estes mesmos militares já foram usados para golpear e controlar, não está louco e nem é bobo. Está sim querendo a perpetuação do poder e, assim, ter poder para direcionar os benefícios políticos e financeiros para a sua fatia de apoiadores, como aconteceu com o regime militar no Brasil. E observem que de fato é uma pequena fatia da população que ainda hoje está dando as mãos a esta estratégia política.


Que minha experiência possa servir para alguma reflexão sobre o retorno do voto impresso e as artimanhas que toda esta trama representa.


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