SOCIEDADE ANTIRRACISTA | Avaliações Psicológicas para crianças negras, a serviço de quem?Publicado em 15/02/2022 Dando sequência a esta série de artigos e vídeos (veja o primeiro vídeo desta série), vou refletir a partir da construção desenvolvida pela pesquisadora Lélia Gonzalez, graduada em Geografia, História, Filosofia, pós-graduada em Antropologia, e desenvolvedora de estudos em Psicanálise. Fundou o Movimento Negro Unificado (MNU). Lélia sempre atuou na militância política tendo se candidatado a cargos legislativos, como foi na época para a Assembleia Constituinte em 1986. Um currículo invejável de uma das maiores referências para a construção da identidade do povo negro no Brasil, de modo especial pela sua esperança e profecia de ver o país como uma nação negra de fato. Dentro de sua trajetória acadêmica, se aporta da teoria psicanalítica no sentido de entender a construção da identidade do negro na sociedade brasileira, pegando efeitos linguísticos da exploração da mulher negra, que neste texto será discutido a partir do livro organizado por Flávia Rios e Márcia Lima “Lélia Gonzalez - Por um feminismo afro-latino-americano”[1]. Neurose Cultural Brasileira Neste sentido, começo com o conceito da Neurose Cultural Brasileira: “O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira.” (Gonzalez, 2020, p. 76). A partir deste conceito vamos observar o modo como Lélia Gonzalez utiliza da psicanálise para construir referências de entendimento da cultura, política, etnia e linguística na estruturação do povo negro no Brasil. Porém, vamos deixar a fundamentação deste conceito, e a forma com que Lélia Gonzalez o construiu a partir da psicanálise, para o próximo texto na sequência destes artigos. Aqui vou trazer parte das muitas inquietações de Lélia na construção de seu pensamento. Um fragmento de percepção a partir de escolas públicas periféricas quando observava como a Psicologia era usada - e é usada até hoje - como instrumento de controle social e manutenção da elite dominante. Uma psicologia predominantemente eurocêntrica, aplicada por psicólogos brancos para enquadrar crianças negras tidas como “problemáticas”, para terem diagnósticos de distúrbios comportamentais e serem enquadradas em um padrão escolar europeu, diametralmente oposto à cultura e história do negro no Brasil, além de ser uma escola totalmente distante do contexto cultural das comunidades periféricas. "Psicologia dos testes" é eficaz no ambiente educacional? A origem da Psicologia no Brasil é europeia e iniciou sua trajetória na formatação de testar pessoas para identificar se elas eram ou não doentes mentais ou portadoras de alguma deficiência mental. Tanto que uma das áreas da Psicologia no Brasil que mais dá retorno financeiro aos profissionais Psicólogos é o campo de avaliação. Editoras e pesquisadores vivem produzindo pesquisas de testes nas mais variadas formas e áreas. Lélia cita esta psicologia dos testes para crianças nas escolas, que em sua quase totalidade as crianças negras eram encaminhadas para um departamento de avaliação mental, pois as professoras atribuíam que estas crianças não conseguiam se concentrar e eram muito “indisciplinadas”: “...vale ressaltar que a maioria das crianças negras, nas escolas de primeiro grau, são vistas como indisciplinadas, dispersas, desajustadas ou pouco inteligentes. De um modo geral, são encaminhadas a postos de saúde mental para que psiquiatras e psicólogos as submetam a testes e tratamentos que as tornem ajustadas.” (Gonzalez, 2020, p. 39). E continua, quando relata o sofrimento das mães diante das convocações da escola para as reuniões de pais cujo tema é mostrar o quanto seus filhos são um problema na escola: “...E isso sem contar quando tem de acordar mais cedo (três ou quatro horas da manhã) para enfrentar as filas dos postos de assistência médica pública, para tratar de algum filho doente; ou então quando tem de ir às “reuniões de pais” nas escolas públicas, a fim de ouvir as queixas das professoras quanto aos problemas “psicológicos” de seus filhos, que apresentam um comportamento “desajustado” que os torna “dispersivos” ou incapazes de “bom rendimento escolar”.”(Gonzalez, 2020, p. 58-59). Sendo especialista em Psicologia Escolar, sempre atuei em comunidades escolares. Até hoje há muita confusão dos professores e pedagogos para entender o papel do profissional de psicologia no equipamento educacional, até porque o sistema educacional não prioriza a formação contínua de seus técnicos, que muitas vezes ficam distantes das produções acadêmicas de pesquisadores brasileiros para a educação. Porém, na psicologia onde os profissionais podem atuar em diferentes áreas e os colocam em contínuo processo de formação, encontramos muitos deles trabalhando com o referencialde normatização. Também a categoria de psicólogos carrega este histórico de atuar no contexto clínico dos centros públicos de saúde mental que tinham a justificativa de testar. Mas na educação, hoje temos a especialidade do Psicólogo Escolar/Educacional que não tem como fundamento (ou não deveria ter), os referenciais clínicos de testagem. Outro fator é a postura distanciada de muitos dos profissionais da psicologia, colaborando para que o olhar que os outros técnicos da educação têm sobre o papel dos profissionais da Psicologia seja simplesmente o de testar e convalidar as impressões que eles observam do comportamento das crianças. Inclusive muitos tendem a oferecer aos psicólogos recém-chegados uma sala na escola para atender os alunos problemáticos. Com o histórico e legado da psicologia de ser um instrumento de suporte de controle social a partir do referencial da elite dominante, de fato esta trama se dá sem que haja um senso crítico pela instituição escola e pelos psicólogos. Outro ponto é o grande emergente de cursos de graduação em psicologia que oferecem muito pouca formação no campo da Psicologia Escolar/Educacional, pois a maioria dos cursos de Psicologia são de redes particulares e tem uma visão de inserção no mercado de trabalho, onde a projeção da categoria visa muito áreas que possam ter um melhor campo de trabalho, isso é, melhor remuneração. De fato, um choque de realidade, que causa um distanciamento entre a realidade dos técnicos da educação, que sofrem com baixos salários e pouco estímulo de formação, como um profissional que muitas vezes está em um equipamento educacional público como um trampolim para uma melhor possibilidade financeira de trabalho. A Especialização em Psicologia Escolar/Educacional ainda é pouco procurada também pela baixa perspectiva de emprego e remuneração. Recentemente estou passando por uma situação que grita o quanto os técnicos da educação estão sendo desestimulados a estarem nesta área. Ofereci um voluntariado para desenvolver um projeto de Psicologia Educacional em uma escola pública municipal de ensino fundamental, pois a diretora recém-eleita assim havia me pedido, mas a administração pública vetou toda forma de projetos que não sejam ligados aos da secretaria de educação, principalmente se envolver capacitação de técnicos. E um dos argumentos do governo municipal é ter que avançar na avaliação das crianças com problemas de aprendizado. Ai, novamente, entra o testador psicólogo para desovar a demanda “patológica reprimida”. Intervenção prática da psicologia nas escolas Minhas intervenções em escolas sempre foram pautadas pelo método participativo, de levar o coletivo da comunidade escolar que envolve pais, alunos, professores, técnicos da educação e funcionários, como também a comunidade onde a escola está inserida, para colaborar na percepção da realidade sócio-econômica-cultural daquela população, e atuar a partir desta percepção. Porém, ainda o modelo de testar, tratar e medicar as crianças está triunfando no sistema público e privado, com a diferença que no público a maioria dos “problemáticos” são as crianças negras, que passam a ser vistas desta forma por serem negras. As poucas crianças brancas nas escolas públicasnão são encaminhadas como “problemáticas” na mesma proporção de equivalência às crianças negras. E piora o cenário quando na escola os profissionais atribuem que estas crianças “problemáticas” são nascidas em famílias “desajustadas”, onde os pais não moram juntos. Este contexto é muito bem representado no filme “O contador de histórias”, que retrata a vida de Roberto Carlos Ramos, uma criança da periferia de São Paulo cuja mãe queria oferecer um futuro melhor pela educação, assim o coloca na inaugurada FEBEM, Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (1964), acreditando que lá o filho estaria protegido da violência da comunidade periférica onde residiam. Uma cena no filme chama a atenção: duas psicólogas testando o menino, que ao ser “internado” na FEBEM, transformou-se em um verdadeiro produtor de “traquinagens”. As psicólogas estavam aplicando testes de inteligência com parâmetros europeus e testes projetivos com interpretações psicanalíticas para constatar que o garoto era de fato um problema. Assim, a FEBEM não era o problema, a desigualdade social e a exclusão não eram um problema, mas sim a criança negra. E as Psicólogas a serviço de um estado opressor e cruel com sua população. Este cenário tendendo sempre a atribuir que os alunos problemáticos geralmente são de famílias desestruturadas, por exemplo, que não tem o pai e a mãe para cuidar, fora dos padrões da família nuclear europeia, levou-me ao livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” [2], de Carolina Maria de Jesus, esta mulher que é a precursora contemporânea urbana na construção da sociedade antirracista, que na década de 1960 traz a cruel realidade de uma favelada: “...- Estes filhos são seus? Olhei as crianças. Meu, era apenas dois. Mas como todos eram da mesma cor, afirmei que sim. - Seu marido onde trabalha? - Não tenho marido. E nem quero!...” (Jesus, 2014, p. 23) Na sequência desta série, vou adentrar nos elementos teóricos que Lélia Gonzalezconstruiu o conceito “Neurose Cultural Brasileira”. |
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