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SOCIEDADE ANTIRRACISTA | Neurose cultural brasileira

Publicado em 17/03/2022

“...O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças.”(Jesus, 2014, p. 38)[i]


Dando continuidade a esta série “Sociedade antirracista”, para texto neste site e os vídeos no meu canal do Youtube, vou abordar o conceito pinçado por Lélia Gonzalez[ii] “Neurose Cultural Brasileira”. 


Elaborando um conceito 


Lélia Gonzalez, ao recorrer da psicanálise a partir de Lacan dentro da estrutura psíquica do ‘sujeito suposto saber’, lembra-se das mães pretas, que pela atuação como mucama“...que a mulher negra deu origem à figura da mãe preta, ou seja, aquela que efetivamente, ao menos em termos de primeira infância (fundamental na formação da estrutura psíquica de quem quer que seja), cuidou e educou os filhos de seus senhores...”(GONZALEZ, 2020, p. 54). Na teoria Lacaniana o sujeito suposto saberestá relacionado com as pessoas que nos identificamos no imaginário e que idealizamos, assumindo e identificando os valores destes como nossos.


Como afirma Lélia, ao esclarecer este conceito Lacaniano trazendo para o contexto da mulher negra na história do Brasil: “...No caso da criança, a mãe é vista como sujeito suposto saber, uma vez que lhe atribui um saber quase que onisciente. Ora, na medida em que a mãe preta exerceu a função materna no lugar da sinhá (que na verdade só fazia parir os filhos), inclusive amamentando os filhos da mesma, compreende-se o que queremos dizer (Lacan, 1966).(1980).” (GONZALEZ, 2020, p. 54).


Assim, Lélia afirma, a partir deste processo das mães pretas, que a cultura brasileira é eminentemente negra, mas que faz prevalecer o racismo, pois o sistema bloqueia qualquer forma de ascensão do negro na sociedade. E conclui:“E, se levamos em conta a teoria lacaniana, que considera a linguagem com o fator de humanização ou de entrada na ordem da cultura do pequeno animal humano, constatamos que é por esta razão que a cultura brasileira é eminentemente negra. E isso apesar do racismo e de suas práticas contra a população negra enquanto setor concretamente presente na formação social brasileira”(GONZALEZ, 2020, p. 55).




Um corte na teoria de Lélia que perpassa pela cultura, economia, mulher e feminismo negro


Aqui estou fazendo um corte no pensamento de Lélia Gonzalez para chegarmos ao entendimento da Neurose Cultural Brasileira. Mas, na teoria de Lélia, toda esta percepção esta intrínseca à estruturação da mulher negra ao longo da história no Brasil pela questão do trabalho, do patriarcado colonizador português e dos desafios da mulher negra de construir sua autonomia nesta sociedade, em que elas se encontram na base discriminatória da pirâmide social. As mães pretas de ontem, são as empregadas domésticas de hoje, que passam muito mais tempo na casa de suas patroas do que em suas próprias casas. De fato, o quantitativo de mulheres domésticas negras que trabalham hoje em residências de classe B e A (94,4% - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – 2019) é muito superior às mulheres domésticas brancas. 


Neste cenário, só mudou a época e o perfil da sociedade, antes colônia e hoje república disfarçada de democrática, mas as mulheres negras ainda estão no serviço de base doméstica, servindo suas patroas que na quase totalidade é branca. Mas este atual contexto continua com sua crueldade escravocrata, como observa Lélia.


Mães pretas de ontem, domésticas de hoje


Lélia Gonzalez:“Vale observar que a expressão popular mencionada... “Branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar” – tornou-se uma síntese privilegiada de como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um corpo que trabalha, e que super explorado economicamente, ela é uma faxineira, cozinheira, lavadeira etc.”(GONZALEZ, 2020, p. 69). Mais um contraditório dentro da elite dominante, que ao mesmo tempo em que detém uma ‘escrava moderna’ por sua suposta força braçal, confia a ela os tratos culturais de seus filhos ainda pequenos. Aqui, neste contraditório, temos um sintoma da ‘neurose cultural brasileira’, onde se confia na mulher negra para cuidar afetivamente dos filhos das patroas brancas e, ao mesmo tempo, nega-se a ela a possibilidade de ascensão educacional e econômica. Lógico, se assim for, onde a elite conseguirá contratar domésticas? E se as condições de vida das domésticas forem melhores, a educação delas mais avançada, com certeza o salário será muito elevado e muitas deixarão de ser domésticas.


Democracia Racial: mais um sintoma


Outro sintoma da ‘neurose cultural brasileira’, que foi construído pela elite e é a sequência do colonizador ao longo dos anos, foi a noção de que o povo brasileiro vive uma democracia racial. Como se a convivência fosse, de fato, pacífica, principalmente quando se olha para as mães pretas, por elas terem um vínculo de cuidado e zelo para com as crianças brancas dos seus senhores. Mas esta sadia convivência foi amplamente defendida pelos pesquisadores eurocêntricos nas universidades do país, também pela música brasileira se acentuou esta falácia: “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza...”. De um povo ordeiro e passivo, que no cotidiano convive com cenas de um racismo cruel sanguinário, que vitimiza negros para cadeias públicas e para as estatísticas de homicídio. Neste sentido do contraditório, que Lélia Gonzalez afirma:“...Para nós o racismo se constitui como sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira.”(GONZALEZ, 2020, p. 76).


O lixo vai falar


Lélia busca na psicanálise elementos que justificam a necessidade do dizer, do falar. Pois na falsa construção do racismo estrutural, a mulher negra principalmente, mas também o povo negro como um todo, foi colocado na condição de não poder falar, de não poder dizer. Especificamente em Miller, um seguidor da psicanálise a partir de Lacan, Lélia vai alavancar a voz do lixo:“... Psicanálise e lógica, uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de lixo da lógica. Ou ainda; a análise desencadeia o que a lógica domestica.”(GONZALEZ, 2020, p. 77 (Miller)).


Assim, a lógica da dominação é domesticar, onde a mulher negra boa não fala, pois não sabe falar, mas ela é doce e sabe cuidar dos filhos dos brancos. Como ressalta Lélia:“A única colher de chá que dá pra gente é quando fala da “figura boa da ama negra” de Gilberto Freyre, da “mãe preta”, da “bá”, que “cerca o berço da criança brasileira de uma atmosfera de bondade e ternura”. Nessa hora a gente é vista como figura boa e vira gente.”(GONZALEZ, 2020, p. 87).


  E é nesta perspectiva que Lélia se posiciona junto com suas companheiras de luta no feminismo negro.“Exatamente por que temos sido falados, infantilizados (infansé aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, por que fala pelos adultos), que neste trabalho assumimos a própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.” (GONZALEZ, 2020, p. 77,78).


Aos que vão se empoderando da identidade negra nesta luta antirracista, que assumem este lugar de fala, o ser negro já não é tão legal assim. Pois a elite branca vem com a ideia de que eles também são racistas, são radicais e ‘amargos’, trazem para o conflito social o conceito de racismo reverso, por exemplo ‘tá vendo, são mais racistas do que nós’ e vendem a ideia que os negros estão sempre no ataque.




Sinais visíveis da neurose cultural brasileira


Podemos ver sinais da “neurose cultural brasileira” nos sintomas de depressão que faz do Brasil campeão desta doença mental na América Latina. No aumento de ocorrências de crime de racismo e agressões diretas à população negra por parte de pessoas brancas. Na agressão da polícia militar nas comunidades periféricas que tem como alvo principal os negros. No índice de infectados e mortos pela COVID-19, que atinge diretamente os negros. No baixo índice de negros que atingiram o patamar de estabilidade socioeconômica, que não chega a 6% da população. Nas ruas de nossas cidades que despejou milhões de famílias brasileiras, em sua quase totalidade negra. Com a volta do Brasil no mapa da fome em 2021. E muitos outros sinais.


Lélia, de fato, nos ajuda a entender as raízes desta ebulição de conflitos e colabora para que, ao entendermos, possamos construir novos referenciais e destruir o paradigma estigmatizante da falsa democracia racial brasileira, que a colonização e os herdeiros dos bens de consumo desta terra construíram sutilmente na cultura do povo brasileiro. Estamos ainda só no começo, mas é possível já ver sinais desta luta crescente de forma sistemática e fundamentada, com um perfil comunitário que torna mais difícil ser destruído.


“- Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.

Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:

- É que eu tinha fé no Kubstchek.

- A senhora tinha fé e agora não tem mais?

- Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. “E tudo que está fraco, morre um dia.”(JESUS, 2014, pg 39)



[i] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

[ii] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano : ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios, Márcia Lima. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.


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