O paradoxo das 40 gramas: Sobre a maconha no BrasilPublicado em 16/07/2024 Na Psicologia e na Psiquiatria, temos o dilema dos tratamentos à dependência química que preconizam o processo de redução de danos. Quando a dependência diz respeito à maconha, tem-se a trava da proibição da venda deste produto no Brasil. Minha preocupação sobre este tema está relacionada ao quanto a demanda da maconha mexe com as famílias brasileiras no campo comportamental, onde parece haver uma batalha entre o Bem e o Mal, como um fantasma no coletivo que nomeia nesta droga os males maiores para jovens a partir da ameaça da dependência química.
Somada esta problemática aos conflitos de ordem religiosa, que levam pessoas a posições ultraconservadoras, tem-se uma contraposição na qual indivíduos vivem sendo contrários à maconha, porém, na prática, convivem com o uso quase que corriqueiro desta no cotidiano. Conheci, inclusive, lideranças religiosas que, nas pregações doutrinárias, demonizam a maconha mas, na prática, usavam e/ou iam até comunidades para comprar maconha - chegando até mesmo a adquirir para familiares no intuito de que os mesmos não se envolvessem com bocas de tráfico. Uma temática que divide opiniões e cega para as realidades do alcoolismo, da dependência em medicações psiquiátricas e pornografia.
Na discussão da dependência, a grande maldita continua sendo a maconha. Liberar ou não o uso da maconha?
O Supremo Tribunal Federal decidiu em plenária, agora em Junho de 2024, que o porte de até 40 gramas de maconha não configura crime e deve ser caracterizado como infração administrativa sem consequência penal. Tal decisão é assertiva na medida em que distingue o que é caracterizado como uso pessoal e o que é tráfico. Muitas pessoas vibraram com esta decisão, vendo nela um avanço. Outras, nem tanto, principalmente aqueles que estão apegados a pautas de costumes conservadores.
Se, por um lado, a definição do quantitativo do porte de até 40 gramas como infração em vez de crime pode dar equilíbrio social para o olhar desta demanda que, no Brasil, pune mais os pobres e negros, ela traz outros pontos que aqui nomino paradoxos:
Primeiramente, ao liberar o porte de até 40 gramas como usuários em um país onde a venda da maconha é proibida, estamos diante de um forte contraditório de lei, pois libera como usuário, mas onde e como este usuário adquire a maconha? A lei que proíbe vender, libera usar. Porém, podemos entender a intenção de não ver o usuário como traficante. Mas, onde então a pessoa usuária vai comprar? Parece que, aqui, entra o faz-de-conta. É proibido, mas acha-se em todos os lugares. Em segundo lugar, há a falácia inerente na ideia de que o usuário que portar até 40 gramas tenderá à mesma equidade de valor e respeito, uma vez que tal classificação servirá para pobres e ricos igualmente. Porém, visto que há diferentes tipos de maconha e com valores distintos, mantém-se uma separação entre pobres e ricos, visto que pobres provavelmente não consumirão a maconha pristina, enquanto o rico terá acesso à maconha de maior qualidade, “da boa”, que pode chegar a mais de R$60,00 por grama, totalizando mais de R$2.400,00 nas 40 gramas tidas como infração. Desta maneira, a diferença existe de maneira a sujeitar o pobre ao esquema do tráfico que foi estrategicamente montado nas regiões periféricas das cidades brasileiras, ao contrário dos ricos, que terão acessos por vias menos arriscadas e expostas e com valor monetário mais alto. E aqui vale ressaltar que muitos dos “peixes grandes” do tráfico sequer residem em tais comunidades periféricas, piorando a situação.
Seguidamente, aqueles que forem pegos com mais de 40 gramas de maconha poderão ser enquadrados como criminosos, intensificando a busca por estoques volumosos. Assim, podemos prever que as buscas policiais com este objetivo se darão principalmente em comunidades periféricas, uma vez que não vemos policiais realizando batidas em condomínios de classe média alta com esta finalidade. Para aqueles que são usuários desta classe social, em algum lugar haverá um estoque do produto sem risco de descoberta por estarem em áreas “nobres” da cidade. Sendo assim, podemos perceber que tais contradições só vão continuar a manter a criminalização dos pobres.
Sabemos que a classe média alta no Brasil gosta muito de uma maconha como “lazer”, se deslocando até comunidades periféricas para adquiri-la ou recebendo o produto em casa. Também sabemos, como citei acima, que vários traficantes não moram nas comunidades periféricas. Diante destas constatações, minha hipótese é que há uma estratégia para despistar a Sociedade e o olhar da Lei a partir da criação do “bode expiatório” do tráfico. Assim, acontece a estigmatização da favela e/ou comunidades periféricas como local de bandidos do tráfico. Parece-me que, nas comunidades periféricas, temos os porta-vozes dos donos do tráfico que, geralmente, são aqueles que possuem uma alta capacidade para o uso da força e que, destemidos e irreverentes, encarnam a tipologia “bandido”. E quem leva a fama é a comunidade periférica como um todo. A maior força destruidora é a ignorância.
A descriminalização das até 40 gramas é mais um capítulo atrativo para esta novela de liberação da maconha, mantendo as mesmas questões de sempre em voga. Não seria melhor legalizar a venda da maconha com critérios que envolvessem Ministério da Agricultura, Ministério da Saúde, Anvisa e órgãos pertinentes para que o processo fosse melhor qualificado e esta demanda entrasse dentro de um projeto público, como já acontece em alguns países? Com este atraso no avanço desta pauta, estamos até perdendo sobre o uso medicinal da maconha. Lógico que, defender a não-liberação atrai muitos adeptos do negacionismo científico. Aquilo que parece um avanço é apenas mais uma trava nesta novela sobre a liberação desta substância.
Aqueles que, em nome de uma religião, argumentos de dependência ou pautas de costumes conservadores na Sociedade, insistem em ver a maconha como um sério problema para a saúde emocional, se esquecem que dependência é causada até por remédios psiquiátricos, doces, objetos religiosos e práticas religiosas, bebida alcoólica, pornografia, entre tantos outros.
Esta trava de abertura e avanço do tema no Brasil é artimanha para esconder gente que se veste de cordeiro, que se diz do “Bem” e que representa uma força de interesse econômico poderosa. Por enquanto, vamos discutir os paradoxos das 40 gramas. E, assim, vemos aumentar ainda mais a cegueira coletiva para perceber as outras destruidoras dependências que estão relacionadas com coisas legalizadas. A maior força destruidora é a ignorância. |
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