Com os pés na Psicanálise de Lacan, uma mudança de rumo*Publicado em 12/03/2025 Minha trajetória com a psicanálise iniciou-se com Freud e os pós-freudianos Melanie Klein e Winnicott. No entanto, há pouco tempo comecei a visualizar novas possibilidades para o meu exercício profissional, dentro da perspectiva lacaniana. Entro em Lacan através do “De um Outro ao Outro” (livro 16)¹. Após a leitura deste seminário, posso dizer que Lacan já habita meu fazer psicológico, tanto para a clínica quanto para meu processo analítico pessoal, sem deixar de fazer vínculo desta teoria com o social, uma demanda que o próprio Seminário 16 como cordas para puxar. Esse processo se deu ao participar do Coletivo Psicanálise & Cultura de Vila Velha – ES, ao longo dos dois anos consecutivos de estudo em Cartel. O objeto a e suas implicações na clínica psicanalítica Aqui, gostaria de pontuar um tópico específico que diz respeito à clínica psicanalítica, embora o Seminário 16 tenha feito emergir muitos outros tópicos e deixado lastros para novas elaborações. Lacan aponta que “A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 2008, p. 14), o que já introduz um nó em minha mente, fazendo-me questionar: ‘O que estou fazendo aqui?’. Porém, com esse quase enigma, vemos um desfecho na construção do objeto a, no qual Lacan, ao longo deste Seminário, vai criando referenciais comparativos e analogias. E, falando de analogias, , “...a conta certa para nos fazer perceber que não é o significado que está no interior, mas exatamente o significante. É com ele que lidamos quando se tratar daquilo que nos importa, isto é, da relação do discurso com a fala na eficiência analítica” (LACAN 2008, p.16). Lacan traz a homologia da mais-valia em Marx e do que ele mesmo define como o mais-de-gozar: “É de um nível homólogo calcado em Marx que partirei para introduzir hoje o lugar em que temos de situar a função essencial do objeto a” (LACAN, 2008, p. 16). Em Marx, Lacan situa a mais-valia a partir da absolutização do mercado, que marca a prevalência da lógica do valor, e para a Psicanálise, o mais-de-gozar, que marca a prevalência da linguagem: “O mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a (...) assim, o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do objeto (a)” (LACAN, 2008, p. 19). Ou seja, essa função do objeto a é homóloga à da mais-valia; nesse sentido, ambas geram um movimento contínuo de furto de satisfação, que se desdobra em um movimento incessante de produção e falta. A ética no exercício psicanalítico: Entre o Furo e a Transferência Ao longo do seminário, Lacan nos conduz a diferentes percepções de estruturas que nunca conseguem chegar a um fechamento definitivo, deixando-as sempre em aberto, colocando em prática o próprio furo de que ele tanto fala. Assim, Lacan relaciona a psicanálise com a aposta e o jogo, quando se refere a Pascal, quando explora a relação infinita entre o 1 e o 2 na matemática, e quando aponta para aquilo que é a falta, evidenciada pelas instituições de poder. Porém, para cada referência neste processo de construção, abre-se um leque enorme de possibilidades. Mas, aqui, quero simplesmente conduzir essa reflexão ao desfecho sem fim da proposta de Lacan neste seminário, trazendo o que considero uma cartilha de conduta analítica, que entendo como ética no exercício psicanalítico: “...devemos admitir que somente a repetição é interpretável na análise, e é isso que tomamos por transferência. Por outro lado, o fim que aponto como a captação do próprio analista na exploração do a, é exatamente isso que constitui o ininterpretável. É por isso que interpretá-la, como já se viu, como foi até impresso, é, propriamente, abrir a porta, convidar para esse lugar do acting out.” (LACAN 2008, p. 338) Estudar o Seminário 16, entendendo que este pode ser uma porta escancarada para adentrar em Lacan, proporcionou-me a possibilidade de perceber que meu próprio processo analítico estava se dando como uma demanda de postura profissional, de estar em análise. Como podemos entender que a formação do analista se dá no estabelecimento de laços de trabalho, o “De um outro ao outro” me coloca na posição de ir para a minha própria análise, pensando no furo e rastreando onde habita o objeto a em mim, em um processo contínuo de interpretações nas duas instâncias que se comunicam: analista/analisando. Na configuração em torno do Seminário 16, Lacan nos aponta uma ética para o processo analítico: “Calar-se, nada ver, nada ouvir... Do calar-se isola-se a voz, núcleo do que do
dizer faz a fala. Do nada ver, muito frequentemente observado pelo analista,
resulta o isolamento do olhar, que é o nó apertado do saco de tudo, pelo menos
de tudo que se vê. Enfim, do nada ouvir dessas duas demandas para as quais
deslizou o desejo...” (LACAN, 2008, p. 338). Nesta citação de Lacan, podemos fazer um retorno a Freud, quando, ao ler o caso clínico de Dora², desenvolve uma reflexão/avaliação de sua atuação, no qual ele posiciona a psicanálise de uma maneira que, a meu ver, fala sobre a ética do psicanalista: “...É fácil aprender a interpretação dos sonhos, a extração dos pensamentos e
das lembranças inconscientes a partir das ocorrências do doente, e as artes de
traduções similares; neste caso, o próprio doente sempre fornece o texto. Já a
transferência, esta tem de ser descoberta, adivinhada quase sem ajuda, a partir
dos pontos de referência mínimos, evitando incorrer em arbitrariedades” (FREUD,
2021, p. 157). Escutar sem pressupostos: O mergulho no Real, Simbólico e Imaginário em Lacan Neste sentido, em ambos os casos, me parece que está em questão escutar sem pressupor nada, deixando que a própria significação daquilo que é ouvido, falado e visto advenha dos encadeamentos significantes da narrativa do analisante. O Cartel 16, como anotei em minha agenda, não se fecha, escancara ainda mais a porta para o mergulho no Real, Simbólico e Imaginário, que é constantemente preconizado na obra de Lacan. Lacan nos transporta para essa dimensão quando apresenta a imagem da maçã, na relação entre Adão e Eva, ao desenvolver a representação de S1, S2 e a: “...A mulher, aqui em S1, que se faz causa do desejo, a, é o sujeito de quem convém dizermos que, com a oferta, conseguiu criar a procura. O homem nunca morderia essa história, se primeiro não lhe oferecessem a maçã, ou seja, o objeto a” (LACAN, 2008, p. 381). Já que “consumir” a maçã é o mesmo que “renunciar” a algo tão grandioso e completo quanto o paraíso. De nó em nó, algumas poesias³ brotaram a partir do estudo de Lacan, dentre elas, uma que dialoga com essa minha construção e na qual encerro esta apresentação. Um nó
Pulso no desejo que busco, Busco no encontro do outro, Encontro-me no que não encontro.
Continuo vagando em busca do gozo Deste gozo que não goza, Mas pulsa o desejo de gozar.
Caio no vazio de um existir, Suplico que alguém possa me vir, E ao chegar consiga entrar em mim.
Ao chegar de algum lugar este alguém, Ao se apresentar não vejo ninguém. Nego encontrar-me Espero no além.
Restabeleço nova busca, Novo impulso me conduz Aos prazeres que nunca encontro.
Saio do real. Adentro no imaginário E continuo simbolizando. (ABARCA, 2024, p.83)
REFERÊNCIAS
1 LACAN,Jacques. O seminário, livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
2 FREUD, Sigmund. Histórias Clínicas - Cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. (Obras incompletas de Sigmund Freud)
3 ABARCA, Gerson. Outono. Vitória: Outras Falas, 2024.
* Este texto possui uma abordagem mais técnica e está voltado para os referenciais da clínica psicanalítica, diferenciando-se um pouco dos textos que geralmente publico aqui no site. Normalmente, priorizo o leitor leigo em psicologia e psicanálise, buscando apresentar a teoria e a prática de forma menos técnica. Neste caso, porém, o texto traz uma especificidade teórica e técnica, com o intuito de despertar o interesse daqueles que não são da área a se aproximarem da leitura dos pensadores da psicanálise. Ao mesmo tempo, compartilho o trabalho desenvolvido em grupos de parceiros, evidenciando o compromisso com a qualidade e a ética do meu exercício profissional. |
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